quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Coringa: A Mortificação Psíquica e a Estratégia Revolucionária

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Felipe Andrade - Movaut (Movimento Autogestionário)
Mateus Orio - Movaut (Movimento Autogestionário)



O filme Coringa, lançado em outubro de 2019, tem suscitado as mais diversas opiniões, interpretações e análises de inúmeras posições políticas. Diante do alvoroço que um filme de grande orçamento dos estúdios hollywoodianos tem proporcionado, o presente texto busca apresentar uma breve reflexão crítica a partir desta mais nova produção adaptada dos quadrinhos. Inicialmente, advertimos que o texto conterá revelações sobre o enredo do filme, de modo que recomendamos a assistência prévia do mesmo para aqueles que não desejam conhecer estas revelações por aqui.
O universo ficcional do filme Coringa remete aos anos 1980, na cidade de Gotham. Uma greve dos coletores de lixo coloca a cidade em crise, infestando-a de ratos que deixam a situação alarmante, sinalizando para a podridão em que a cidade está imersa. Ao lado disso, uma crise econômica gera desemprego, miséria, entre outros problemas, deixando grande parte da população à beira de uma situação caótica, pronta para explodir a qualquer momento. De maneira oportunista, o rico empresário Thomas Wayne[1], visando ganhar as próximas eleições para prefeito, lança a sua candidatura afirmando que ele próprio é a solução para os problemas da cidade, recebendo apoio dos meios de comunicação e da elite econômica local. Entretanto, por parte da população empobrecida há uma grande recusa dos políticos e da política institucional, o que será desenvolvido adiante.
Em meio a esse contexto de insatisfação generalizada da população empobrecida, o filme acompanha o desenvolvimento e transformação do personagem Arthur Fleck, filho de Penny Fleck, que, completamente debilitada por problemas de saúde, vive sob os cuidados de seu filho. Toda a trama do filme acompanha os dramáticos acontecimentos da vida de Arthur, a começar pelo fracasso em sua tentativa de ser comediante, a ausência do seu pai durante toda a sua vida, a dificuldade de desenvolver relações afetivas, a sua fraqueza física, os desequilíbrios psíquicos (o que inclui as suas risadas involuntárias) e uma condição de vida miserável. A debilidade física e os problemas psíquicos (que não trataremos aqui de “diagnosticar” como fazem alguns) de Arthur estão relacionados com as condições miseráveis da população trabalhadora da cidade de Gotham. Além disso, a origem de seu problema psíquico remonta a um ato de violência física que sofrera de sua própria mãe quando ainda era um bebê, o que agrava ainda mais sua condição quando ele descobre, sendo este um elemento fundamental para a sua transformação no Coringa.
Arthur é um comediante que trabalha na agência Haha’s, empresa responsável por oferecer serviços de entretenimento em hospitais e lojas. Apelidado pela mãe como “feliz”, Arthur Fleck trabalha em uma profissão que teria como finalidade fazer as pessoas rirem e se sentirem “felizes”. Ao contrário disso, a vida de Arthur encontra-se distante de qualquer possibilidade de realização pessoal, resumindo-se ao fracasso, a uma “piada”. Arthur é mais um indivíduo comum que jamais conseguirá ser um grande humorista da televisão, como o apresentador Murray Franklin[2] ou Charlie Chaplin[3]. O desejo de reconhecimento por parte de Arthur pode ser pensado como expressão dos valores dominantes (status, riqueza, ascensão social etc.), da mentalidade burguesa e da sociabilidade capitalista que tem como uma de suas características a competição social.  A competição social enquanto valor dominante no atual capitalismo neoliberal, é colocada como o império da liberdade, em que todos podem ter a chance de ser bem-sucedidos do ponto de vista econômico, mas que na verdade o sucesso, o dinheiro, a ascensão social e o prestígio são prerrogativa de uma minoria ínfima.
O personagem Arthur expressa, metaforicamente, as centenas e milhões de indivíduos na sociedade capitalista que jamais conseguirão satisfazer as suas necessidades e potencialidades como seres humanos. Dessa maneira, a sociedade capitalista produz sofrimento no conjunto da população trabalhadora, dificultando a sobrevivência material das pessoas e gerando diversos desequilíbrios psíquicos e danos psicossociais. As relações sociais de alienação, dominação e exploração que a classe dominante e suas auxiliares submetem ao conjunto das classes desprivilegiadas relacionam-se com a violência fundante do modo de produção capitalista, que é um modo de produção classista e violento. A própria violência, a despeito de ser um resultado da ação individual de seres maus por natureza, tem raízes sociais, notadamente nas desigualdades sociais que, em meio à competição e à concentração da propriedade privada, impele uns indivíduos ao uso de constrangimentos físicos e morais para sobrepujar outros. Portanto, o processo de mortificação no capitalismo torna os trabalhadores incapazes de viverem em condições salutares nessa sociedade, destruindo-os fisicamente, psiquicamente e materialmente.    
No universo ficcional de Gotham, o estado, os políticos e os meios de comunicação tratam a população empobrecida como “palhaços”[4]: de maneira jocosa culpam os pobres pela sua miséria, desemprego, pela greve e sujeira que assola a sociedade. Assim, a vida de Arthur é o sintoma de uma crise geral (econômica, política etc.) que impacta ele individualmente, mas também o conjunto dos trabalhadores. No momento em que a política de assistência social é suprimida, entre outras medidas paliativas estatais, Arthur fica desamparado, sendo jogado na miséria, na violência, no esgoto a céu aberto que se encontra Gotham. A situação agrava-se ainda mais quando ele é demitido do trabalho, sua mãe vai parar no hospital e, posteriormente, os conflitos da sua infância vêm à tona. No desfecho do filme, Arthur será preso nos escombros do hospital psiquiátrico Arkham, refúgio dos “loucos”, “assassinos” e de qualquer marginalizado incapacitado de viver naquela cidade.
A virada na trama do filme começa no momento em que Arthur, vestido de palhaço, ao ser ironizado e maltratado por três executivos da empresa Wayne, reage e acaba assassinando os três. Os assassinatos, empreendidos como uma resposta à toda a violência sofrida por Arthur até então, levam-no a uma situação de perplexidade. O desequilíbrio psíquico é intensificado pela falta de assistência e, em meio ao fervor da população empobrecida em relação aos assassinatos, acontece a virada na vida do personagem. No universo ficcional do filme, os assassinatos se constituem no estopim de uma mobilização das pessoas contra os políticos, os “poderosos”, os “ricos” da cidade. Daí em diante, a população começa a fazer protestos, a deslegitimar a política institucional, os políticos profissionais, e o palhaço torna-se o símbolo do sentimento de ódio dos “pobres” contra os “ricos”.
A transformação final de Arthur é efetivada quando ele finalmente consegue aparecer em seu programa de humor favorito, apresentado por Murray que, de maneira completamente depreciativa, convida Arthur Fleck para ir ao programa depois de zombar dele por conta de um vídeo gravado em um bar. A partir disso, Arthur Fleck apresenta-se como Coringa no programa de humor, deixando de lado qualquer sentimento de empatia pela sociedade, transbordando em si toda a capacidade de destruição e violência a todos aqueles que lhe infligiram dor em sua vida. Por isso, a sua ação não possui uma estratégia política, no sentido de contribuir para uma mudança social. O Coringa é, ao mesmo tempo, a recusa e o sintoma da mortificação completa do indivíduo. No entanto, ele se torna o símbolo das mobilizações e protestos da população empobrecida que, identificada com o seu sofrimento, começa a usar as máscaras de palhaço nas manifestações.
Os protestos de rua no filme remetem às grandes manifestações do século XXI, desde o Occupy Wall Street, o Movimento antiglobalização, as manifestações populares no Brasil em 2013, o movimento Piquetero na Argentina etc. As últimas cenas retratam mobilizações e revoltas populares contra os “ricos”, contra a elite econômica, recusando-se os partidos políticos, a democracia representativa e enfrentando a polícia como parte das ações diretas contra a violência impelida aos mais pobres na cidade de Gotham. A partir disso, é preciso refletir sobre o aspecto final do filme, em seu desfecho desprovido de uma estratégica política ou transformação social.
O personagem título do filme expressa o sintoma da destruição psíquica e física de qualquer indivíduo da sociedade atual, em um grau extremo de desequilíbrio psíquico e violência, o que o torna incapaz de viver em sociedade. Ele expressa a recusa da sociedade, mas não a proposição de uma nova. Dito isso, uma parte dos indivíduos de grupos políticos progressistas e até supostos revolucionários tem simpatizado com as ações do Coringa no filme. No entanto, tais ações são destituídas de qualquer compromisso com a emancipação humana e transformação social e radical dessa sociedade. O Coringa deixou de ter qualquer propósito em sua existência, que não seja incitar o caos e a barbárie nas ruas, e esta posição não tem relação nenhuma com a estratégia revolucionária proposta por grupos políticos, sobretudo marxistas e anarquistas revolucionários. Desta forma, os atos de violência provocados pelo coringa e também aqueles provocados por seus seguidores não se constituem de modo algum em atos estratégicos em direção à transformação social. Estes atos redundam, simplesmente, em violência gratuita, exprimindo a exacerbação da barbárie capitalista.
A violência do Coringa não é estratégica, não é direcionada politicamente. Ela é um grito desesperado, sufocado pela sociedade que lhe destruiu. A situação dele pode ser pensada no caso da classe trabalhadora que, vivendo no atual regime de acumulação, está submetida a diversas formas de violência cotidiana e, em casos extremos, também pode chegar ao nível de mortificação e reação violenta do Coringa. No entanto, a luta contra a violência dessa sociedade deve ter como resposta a destruição do capital, e das relações que o fundamentam, acompanhada da paixão pela construção, isto é, a utopia concreta, o desejo e os sonhos por uma vida melhor, radicalmente diferente do que é vivida cotidianamente pelos trabalhadores no capitalismo.
Desse modo, é preciso perceber que a destruição de indivíduos específicos (burgueses, jornalistas, policiais etc.) e os protestos de rua levados a cabo sem qualquer projeto político, desvinculados das lutas operárias, não possuem relação nenhuma com uma concepção marxista de revolução. A revolução comunista visa a destruição das relações da sociedade capitalista (aparato estatal, capital, dinheiro etc.), e não o assassinato de indivíduos específicos. O assassinato de determinados indivíduos pode ser um estopim que gera uma revolta levando a uma insurreição armada e que, por sua vez, pode culminar em um golpe de estado. Desse modo, a sociedade capitalista estaria intacta, mudando-se apenas o partido que estaria no poder.
O ódio ao burguês específico[5] é um ato infrutífero, se não for acompanhado de uma crítica radical da sociedade capitalista, da radicalização das lutas operárias e de uma estratégia revolucionária. A estratégia revolucionária visando a nova sociedade deve envolver meios (propaganda revolucionária, luta cultural, coletivos autogeridos, perspectiva proletária etc.) coerentes com a finalidade: a autogestão social. Os atos de descontentamento e sentimento generalizado de ódio devem visar os verdadeiros inimigos: a classe dominante e suas classes auxiliares. Estes atos, além disso, devem ser desenvolvidos de forma coerente com os fins almejados sendo, nesse sentido, desenvolvidos de forma também autogerida. Portanto, a plena felicidade só poderá se concretizar quando os inimigos reais forem desmascarados e em seu lugar se instaure uma nova sociedade: a associação livre e igualitária dos produtores, a autogestão social. Dessa maneira, não existirão mais Coringas, pois as raízes sociais da miséria que produzem indivíduos miseráveis serão abolidas e as novas relações sociais criarão indivíduos também novos, emancipados.                                                                                                   



[1] Thomas Wayne é o pai da criança Bruce Wayne que futuramente se tornaria o Batman.
[2] Personagem do universo ficcional do filme.
[3] Ator real que aparece em uma cena que exibe um de seus filmes.
[4] Em um diálogo do filme, Thomas Wayne, respondendo sobre o que pensa das mobilizações nas ruas, diz na televisão que: “Aqueles de nós que conquistaram algo na vida sempre olharão para os que nada conquistaram e verão apenas palhaços”.
[5] Inclusive, muitos podem o odiar o burguês por querer e desejar ser um burguês, mas não ter condições materiais para isso. Desse modo, ódio pode ser manifestação do sentimento de inveja, dos valores dominantes (ascensão social, status, riqueza etc.), entre outras determinações. Os indivíduos que buscam destruir outrem, para depois tomar o seu lugar, podem ser chamados de rebeldes egoístas, ao invés de revolucionários.



O Inconsciente Coletivo no Filme Como Enlouquecer o Seu Chefe

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Artigo publicado por Felipe Andrade na Revista Espaço Livre em 2019:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/1020/898