sábado, 6 de junho de 2020

Minicurso Cinema e Crítica Social - Concepção Dialética da História do Cinema

Minicurso Cinema e Crítica Social - Pressupostos Teórico-Metodológicos (Parte I)

Minicurso Cinema e Crítica Social - Concepção Dialética da História do Cinema (Parte II)

A Duvidosa Virtude da Propaganda: “Terra e Liberdade” de Ken Loach - Gilles Dauvé


Texto originalmente publicado no site Crítica Desapiedada.

O filme Terra e Liberdade goza de grande reputação em círculos militantes. O propósito deste texto não é questionar esta reputação do ponto de vista de um crítico de cinema: o objetivo neste caso serão as questões políticas e teóricas.
Tampouco nos limitaremos às questões estéticas.
Alguns indivíduos são favoráveis à ambiguidade na arte, permanecendo distantes de romances com uma mensagem, e acreditando que é com nobres sentimentos que a má literatura é escrita (e provavelmente a má teoria também).
Outros depreciam a “arte pela arte”, e preferem a ficção que mostre questões sociais sem ter grandes pretensões.
Não entraremos nesses debates. Este trabalho é exclusivamente sobre Terra e Liberdade, não sobre a filmografia de Ken Loach ou sobre suas posições políticas.
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Primeiro, um breve resumo para aqueles que não assistiram ao filme (lançado em 1995).
Quase toda a narrativa é um flashback. Uma jovem mulher descobre o passado do seu avô, David, falecido recentemente. Na década de 1930, David, um jovem trabalhador, e membro do Partido Comunista da Inglaterra, vai à Espanha lutar contra o general Franco. Ainda que sua intenção original fosse integrar as Brigadas Internacionais, ele termina sendo integrado a uma pobremente equipada milícia do POUM [Partido Operário de Unificação Marxista] no front de Aragão, junto a homens e mulheres, voluntários de toda a Europa. Uma delas é Blanca, uma ardorosa defensora do POUM. David se sente atraído por ela.
Quando é ferido, David vai a Barcelona, onde se une às Brigadas Internacionais. Em maio de 1937, quando o Estado republicano, apoiado pelos stalinistas, finalmente recupera o controle da cidade e se livra dos elementos radicais, David, primeiro, fica do lado das forças governamentais, até que, posteriormente, rompe com o partido e volta a ver a sua antiga companheira.
Entretanto, a milícia do POUM está em grave situação. As Brigadas Internacionais, primeiramente, negam-lhe qualquer apoio militar, para logo forçá-la a debandar (o POUM havia sido acusado de agente do fascismo). No meio desse conflito, Blanca é morta.
Retornando ao presente na Inglaterra, no funeral de David, vemos seus velhos camaradas de armas na Espanha. O filme termina com uma saudação com punhos erguidos.
Como mostrado neste resumo, o filme desenvolve eventos de grande importância histórica, poucas vezes vistos nas telas de cinema. Casos similares, como o filme de Sam Wood, Por Quem os Sinos Dobram, produzido em 1943, quando a Rússia e os Estados Unidos lutavam juntos contra Hitler, apresentou o campo antifascista como uma frente unida, em sintonia com o romance de [Ernest] Hemingway que inspirou o filme. A temática de Terra e Liberdade é uma que raramente se aborda no cinema.
O problema é que, em vez de problematizar e instigar o debate crítico sobre esses eventos, a narrativa é feita de uma maneira que força conclusões como se fossem autoevidentes para o espectador, e, em última instância, esvazia o debate político.
Isto não quer dizer que não haja debate político no filme. Pelo contrário. Uma das cenas mais longas (12 minutos) do filme, e uma das mais importantes, segundo o próprio Ken Loach, descreve uma discussão sobre a coletivização em uma vila libertada pela milícia do POUM. A coletivização deve ser implementada imediatamente ou não? Um americano argumenta que a guerra contra Franco deve ser prioritária, e recomenda aos moradores que não tomem medidas radicais que impeçam que as democracias capitalistas apoiem a República em seu esforço antifascista. Em contraste, um voluntário alemão propõe que a guerra e a revolução devem estar de mãos dadas. A reunião se declara, então, a favor da coletivização. Esta cena está claramente no núcleo da questão.
Assistir a um filme, no entanto, é diferente de ler e escolher posições políticas no papel. O observador encara uma tela: os personagens atuam em uma sucessão de cenas, e a forma pela qual cada cena ganha relevância, depende do que é mostrado antes e depois ao espectador. Neste caso, a discussão sobre “guerra versus revolução” ou “guerra mais revolução” só tem sentido em relação à totalidade da trama, especialmente a cena em que o conflito entre a milícia e o exército regular explode em violência e sangue. Certamente, a oposição entre esses dois grupos é central no filme: daí, a impressão e a lembrança que nos ficam provêm diretamente da maneira como são caracterizados.
Por um lado, a milícia do POUM é mostrada como cheia de vida e acolhedora. Uma união fraterna, onde cada miliciano tem e mantém sua personalidade. As milicianas também, já que não é uma milícia exclusivamente masculina. Blanca não é apenas bonita, mas cumpre uma função importante, política e emocionalmente. (Ao contrário, em Por quem os sinos dobram, a personagem principal feminina, Maria, era uma vítima, e não uma protagonista ativa). Por outro lado, o exército republicano, agora “profissional”, é caracterizado como uma massa de brutais e indiferenciados uniformizados. Entre seus oficiais, observamos o americano que assistimos argumentar contra a coletivização.
Como todo o drama é visto (e narrado) através dos olhos de um bom rapaz, somos levados a nos identificar com um grupo (o grupo ao qual pertence o rapaz) e contra o outro: em parte, devido ao que aqueles grupos representam, e muito mais devido ao que eles aparentam.
Imaginemos um filme russo antitrotskista produzido no final dos anos 1930 (os stalinistas denunciaram o POUM como trotskista, o que ele não era: Trotsky foi abertamente crítico até o envolvimento do POUM na Frente Popular). Nos mostrariam, de um lado, um pelotão das Brigadas Internacionais, onde socialistas, comunistas e democratas lutariam como irmãos. Nos familiarizaríamos com três ou quatro deles, de diferentes países, com diversos passados e personalidades, com pequenas divergências que seriam resolvidas até o final. Nós os veríamos lutando, cozinhando e se divertindo. Pessoas decentes e eloquentes.
Do outro lado, nos apresentariam um bando selvagem e armado, incapaz de ter um diálogo político coerente. Se o roteirista se preocupa com a caracterização, ele mostraria cada um deles se embriagando, outro observando o relógio que roubou de um burguês e um terceiro fugindo com o dinheiro do grupo.
De acordo com a mesma lógica de Terra e Liberdade, só que de forma invertida, a história seria contada através das memórias de um jovem e inocente trabalhador. No começo, ele teria inclinações anarquistas, mas enquanto a trama fosse se desenvolvendo, ele se converteria gradualmente em amigo do camarada Stálin. Em síntese, o primeiro grupo seria identificado com o que reconhecemos como virtudes da humanidade, e o segundo com os sinais da malícia. Com quem o espectador seria levado a simpatizar? Isto seria Terra e Liberdade invertido: propaganda stalinista ao invés de antistalinista.
O mal da propaganda não é apenas porque ela mente. Os propagandistas também nos mantêm passivos: supõem que nos dão alimento para nosso pensamento, mas só nos entregam lixo processado.
A publicidade e a propaganda têm muito em comum. Ainda que a propaganda frequentemente pareça pobre e grosseira, comparada às habilidades imaginativas dos spots publicitários, os propagandistas usam técnicas similares. Um comercial de TV liga o produto em promoção à imagem de algo que se sabe de antemão que o potencial comprador gosta: um carro será mostrado junto a uma família feliz, comida para animais de estimação com um alegre gato jogando, uma loção corporal com uma modelo fashion, etc. Ela funciona sob o princípio da manipulação emocional. De igual forma, a propaganda nos dá um sinal positivo sobre o que queremos acreditar, e um negativo sobre o que deveríamos recusar. Em essência, é isto que a oposição milícia/exército resume em Terra e Liberdade: uma confrontação entre os bons e os maus.
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Nos anos 1970, alguns críticos de cinema atacaram o que rotularam de “ficção de esquerda”. Este gênero consistia em tomar emprestado os códigos do popular cinema mainstream e aplicá-los a um conteúdo antiburguês ou antiestablishment. Como nos filmes de detetive, o investigador iria desvendando a trama de um crime, mas desta vez o transgressor seria um criminoso social ou político. O personagem principal, um bom homem, apesar de suas contradições, seria um jornalista investigativo, um trabalhador, um policial honesto, um “homem da rua”, fazendo o seu melhor contra os militares fascistas, um estuprador, policiais racistas, um político corrupto ou um patrão explorador e abusivo. Como numa moderna moralidade (gênero teatral), os personagens personificam atitudes e grupos, e o protagonista principal representa a humanidade (isto é, a audiência) e atua em seu lugar. À medida que a trama se desenvolve, o herói e o espectador desmascaram a indecência e a infâmia da sociedade atual. Algumas vezes, o filme consegue isto sem precisar de um investigador ou de um herói: a moral implícita da história é tão clara que não há necessidade de corrigir o mal. Aqui há dois bons exemplos:
Z (1969): em um país não especificado (embora todos saibamos que se trata da Grécia), um obstinado juiz lança luz sobre o assassinato de um primeiro ministro da esquerda por oficiais do exército. A Confissão (1970): em 1952, um ministro do governo checo é preso sob falsas acusações e obrigado a confessar. Ambos foram dirigidos por Costa-Gavras e inspirados em fatos reais (em A Confissão, o julgamento de Slansky é mais tarde narrado por Artur London). Ambos foram grandes êxitos comerciais e de crítica. Um atacava os fascistas, o outro, os stalinistas.
Porém, o que foi esclarecido nestes bem intencionados filmes acerca da ditadura dos coronéis na Grécia entre 1967-1974, ou sobre os regimes burocráticos na Europa Oriental? Pouco ou nada, já que a explicação histórica é reduzida a uma luta entre heróis e vilões.
O leitor objetará que Ken Loach está muito distante do elegante e mainstream Costa-Gavras: afinal, o seu cinema não é orientado por perspectiva de classe? De acordo, mas há muito mais do que uma análise de classe. As ideias subjacentes em um filme, e muito mais a visão política que procura desenvolver, só existe em relação à forma como o escritor ou o diretor nos apresenta. Sempre que se trata de arte interessada, a forma é tão importante quanto o conteúdo. Para entender integralmente o significado histórico de Dickens ou Zola, não se pode contentar em entender apenas as suas “ideologias” explícitas ou implícitas: também devemos nos inteirar de como esses autores populares buscaram construir o apoio e a aprovação do leitor. Como se relacionam com o leitor? Quanto o permitem se situar na leitura? De fato, autores como Zola e Dickens usam códigos e padrões que deixam muito pouco espaço para uma distância crítica e reflexiva. O que é verdade nos livros se aplica ainda mais aos filmes, visto que o cinema apela mais diretamente aos sentimentos e emoções do que outras formas de arte, posto que a sua capacidade de manipulação é maior.
Terra e Liberdade faz grande uso dessa capacidade. Para enviar a sua mensagem à audiência, Ken Loach envia os sinais adequados. Ele é cuidadoso ao não nos apresentar um protagonista que entende tudo desde o princípio. David vai à Espanha como um dedicado, porém ingênuo antifascista, com uma crença ingênua no PC e na União Soviética. Ele é como milhões de trabalhadores em todo o mundo costumam ser, ingênuos, tal como é o espectador médio do filme. Só aos poucos e após dolorosas experiências, incluindo a perda da mulher que ama, ele perceberá a verdade que nós os espectadores reconhecemos graças a ele. A Espanha terá sido uma terra de iniciação tanto para David quanto para nós ao mesmo tempo.
O problema é que nossa consciência não é gerada ao analisar e criticar diferentes opções e posições. Tudo nos leva a identificar com David, com suas sucessivas atitudes, dúvidas e certezas finais, se nos deixa com apenas uma forma de pensar. Além do mais, e como na maioria dos outros filmes, o processo de empatia é ainda mais efetivo quando podemos nos identificar com um indivíduo que está longe de ser o protótipo do herói de ação, que parece lutar e atuar como você e eu. O anti-herói é a forma mais comum de herói dos nossos dias, prefira Loach ou George Lucas.
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Alguns amigos me disseram: “Terra e Liberdade pode ter suas debilidades, mas tem o considerável mérito de mostrar os conflitos que existiram dentro do campo republicano, especialmente as revoltas de maio de 1937, num filme destinado a uma massiva audiência: portanto, ele ajuda a esclarecer historicamente e encoraja o observador a aprender mais por si mesmo”. Este argumento está errado por uma série de razões.
Primeiro, os eventos de maio de 1937 possuem um significado muito diferente em 1937 e 70 anos mais tarde. Orwell, cuja experiência na Espanha foi semelhante à de David, teve uma grande dificuldade para ver seu livro Homenagem à Catalunha publicado. Algumas das 1.500 cópias publicadas em 1938 não haviam sido vendidas quando uma segunda edição saiu em 1951. Quando Orwell morreu em 1950, havia somente uma tradução (em italiano). A edição americana apareceu somente em 1952, a francesa em 1955. Desde então, o livro tornou-se parte da bagagem cultural de grande parte das pessoas politicamente interessadas ou educadas do ocidente. Somente o seguidor de Ken Loach poderia ter conhecimento das lutas “mutuamente destrutivas” ou “fratricidas” entre stalinistas e anarquistas durante a guerra civil espanhola. É no mínimo duvidoso que o filme Terra e Liberdade esclareça algo ao espectador médio. A ele é mostrado um conflito entre protagonistas que permanecem estranhos. POUM, CNT, trotskistas, comunistas… que significa tudo isso? E que diferença há entre comunistas e stalinistas? Tudo o que o espectador lembrará é que os derrotados (POUM e anarquistas) estavam com a razão, mas isso não foi suficiente para fazer algo com ela, e que os stalinistas ganharam… até Franco vencer a guerra. Felizmente, a história já mudou de página: o totalitarismo terminou em suas variantes fascistas e stalinistas. Franco está morto e também a URSS está (uma vez mais, em relação à diferença entre comunismo e stalinismo, a confusão continua: o stalinismo é mostrado simplesmente como uma mescla de autoritarismo, militarismo, decepção e mentiras). As cenas das lutas de rua em Barcelona, em maio de 1937, não nos dizem muita coisa.
Em segundo lugar, o que podemos entender ao nos identificarmos com uma forma de bem ante uma forma de mal? Se levarmos a lição a sério, devemos nos preparar para lutar (inclusive, numa guerra) contra um inimigo caracterizado como um vilão absoluto, contra quem qualquer meio, mesmo aqueles que são considerados inaceitáveis, como a tortura e os assassinatos extrajudiciais, apareceriam como um mal menor. Quando lidamos com aqueles que explodem pessoas inocentes no metrô, tudo parece permitido. (“Um terrorista é alguém que tem uma bomba, mas não uma força aérea”, escreveu William Blum). Ken Loach certamente não apoia a “Guerra contra o terrorismo”, mas a lógica binária de Terra e Liberdade é compatível com qualquer versão de um mal menor.
Terceiro e mais importante, o filme evita as questões políticas importantes da guerra na Espanha:
Basicamente, para a Esquerda comunista (principalmente a esquerda “italiana”, mas também a esquerda “germano-holandesa”), a partir do momento em que os proletários aceitaram combater o fascismo sob a liderança do estado democrático, eles perderiam de duas formas distintas. Primeiro, perderiam as vitórias e reivindicações que haviam obtido da burguesia até aquele momento, e, posteriormente, perderiam a batalha militar antifascista. A posição da esquerda comunista foi e continua sendo a de uma pequena minoria.
Entretanto, se ninguém toma essa posição, se se acredita que Franco somente poderia ser destruído pela ação de uma força armada efetiva, apoiada por todas as tendências democráticas da população, incluindo a burguesia, então quem está correto? A pequena milícia do POUM, cuja única força era derivada de sua experiência proletária e sua atividade insurgente? Ou uma forte e estruturada máquina militar, popular e moderna ao mesmo tempo, que não tem medo de fazer uso da disciplina, nem de incorporar oficiais conservadores, desde que lutem pela República e contra o fascismo?
Terra e Liberdade não se posiciona a respeito desta questão. Na verdade, não se posiciona em praticamente nada, apenas nos faz sentir empatia pela gente comum frente aos poderosos. Nada mal… porém, não faz nada para expandir nossa consciência.
Este não é o momento para propor outra versão da história. Digamos apenas que em 1937, quando a contrarrevolução prevaleceu em todo o mundo, incluindo a Espanha, procurar uma forma revolucionária de lutar contra o fascismo era como tentar quadrar o círculo. A vitória do exército regular contra as milícias, e, finalmente, sua derrota contra Franco, eram inevitáveis. Como Orwell escreveu alguns anos depois:
“As milícias do governo espanhol durante os primeiros seis meses da guerra – o primeiro ano na Catalunha – eram um exército genuinamente democrático, porém eram também um tipo primitivo de exército, capaz apenas de ações defensivas (…). Mas se se quer eficácia militar no sentido comum, não há como escapar do soldado profissional, e enquanto o soldado profissional estiver no controle, ele se encarregará de impedir que o exército seja democratizado. E o que é verdade entre as forças armadas também é verdade para a nação como um todo; cada aumento da força da máquina militar significa mais poder para as forças da reação” (Democracia no exército britânico, setembro de 1939).
Um exército democrático não é aquilo que pretendemos. Além do mais, as milícias certamente não eram tão “primitivas” como Orwell sugere. Qualquer que seja o caso, o filme de Ken Loach não concorda nem discorda. Ele se esquiva do assunto. O problema de Terra e Liberdade é que ele nos deixa com a impressão de que apesar das más condições da época (isto é, com uma burguesia no poder do estado), as milícias como são caracterizadas no filme poderiam ter resistido contra Franco.
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Terra e Liberdade não é criticável por ser um filme com uma mensagem, mas porque pretende nos educar, enquanto nos entretém com verdades mastigadas. A narrativa não é tão diferente da típica produção de Hollywood com seus bons moços, seus vilões malucos, seu homem honesto que entra na vida adulta, perde a inocência e um pouco do rumo até voltar ao caminho correto. Todas essas características da ficção mainstream se encontram em Terra e Liberdade, sem esquecer da inteligente e bela moça que morre pelo herói: a morte trágica de Blanca é o passo final na ruptura de David com o stalinismo. O filme pensa por nós. Nos mostra um herói positivo que serve de exemplo para a nossa própria conduta. David aprende sua lição duramente em 1937: a narração de sua tomada gradual de consciência, a sua perda das ilusões em relação ao PC, nos instruirão 60 ou 80 anos depois. Tudo é mostrado através dos olhos de David: qualquer outra janela para a realidade está fechada para nós. David enfrenta uma sucessão de escolhas que são de fato impostas a ele, e somos obrigados a corroborar suas (forçadas) decisões, à medida que cada membro da audiência se identifica com ele. Na verdade, esse é exatamente o propósito de focalizar tudo em um herói positivo (um observador crítico deveria recusar o filme em sua totalidade, assim como um fanático stalinista, mas estes são espécies em extinção). Ao invés de assumir o controle de sua compreensão, o espectador se vê induzido a permanecer passivo.
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Ainda que que possa ser interessante fazer uma análise de outros filmes de Ken Loach (incluindo os seus documentários), este texto não é sobre ele em geral, mas tão somente uma pequena intromissão na prática da propaganda. (Por exemplo, se o método utilizado em Terra e Liberdade também pode ser visto em Os ventos da Liberdade (2006), não é assim em Looks and smiles (1979)). 
A autonomia – tanto individual, como coletiva – não é certamente a chave para tudo, mas é uma condição necessária de uma luta consistente pela emancipação humana. Por isto, não pode haver nenhuma atividade de propaganda “útil”. O autopoder é incompatível com o controle das emoções, heróis positivos, os modelos a seguir e as conclusões induzidas. Nada é óbvio. A alienação não pode ser combatida com meios alienados.
2014
Gilles Dauvé
Traduzido por Felipe Andrade e revisado por José Santana. A tradução foi realizada a partir das seguintes versões: https://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2017/01/las-dudosas-virtudes-de-la-propaganda.html e http://www.troploin.fr/node/82.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Capitalismo e Cinema - Nildo Viana

O presente artigo busca analisar a relação entre cinema e capitalismo. A relação entre cinema e capitalismo pode ser observada por vários aspectos. O primeiro aspecto seria a percepção de que o cinema é um produto do capitalismo e isto está ligado ao processo de discussão sobre os meios oligopolistas de comunicação, tal como é destacado por alguns autores.1 Tendo em vista que um filme é um produto social e histórico, e ainda coletivo, pois ao contrário de outras formas de arte raramente é produzido individualmente, sendo geralmente produzido por uma equipe, então é fundamental entender o seu processo de produção no interior da sociedade capitalista.
(...)
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Artigo:

Lista dos filmes citados no artigo que estão disponíveis no YouTube:
https://www.youtube.com/playlist?list=PL7ZCPdf7hH5s1krGBUNCc_8bkWOizKxsg

Download do Torrent dos filmes citados no artigo:
https://mega.nz/file/KPgTTRrC#1M8Wa5YF1un_LiSJJdwX-RteaIr25WdXhNAZ7TUUVec

Filmes no arquivo:
- Christine, O Carro Assassino
- Clube da Luta
- Crepúsculo dos Deuses
- FormiguinhaZ
- Mad Max
- Matrix
- Mundo Proibido
- O Anjo Exterminador
- Um Estranho no Ninho
- Sociedade dos Poetas Mortos
- Uma História sem Fim
- V de Vingança
- O Show de Truman
- Eles Vivem
- O Mentiroso
- Donnie Darko

Download pelo Mega dos filmes citados no artigo:
A Regra do Jogo (1939) - Jean Renoir
https://mega.nz/#!EupDUCqB!KUyx3tmOqCmoKANWBZDOEh6sRuVGUVzRr8n7tg2SGdE

A Terra Treme (1948) - Luchino Visconti
https://mega.nz/#!v3xTWQAD!1s8gKeFVA4SF7oRG7ZL--Y2zyOODuU4aslItycPl_UM

Belíssima (1952) - Luchino Visconti
https://depositfiles.org/files/xm6lkmqfo

Cecil bem Demente (2000) - John Waters
https://mega.nz/file/9fRUWLaT#rncw73Hg6cj22sZ9CaBSjluSrHIs4VjjTez1-_o8u_M

Love Story - Uma história de amor (1970) - Arthur Hiller
https://depositfiles.org/files/l6s1kbas4

O Dia do Gafanhoto (1975) - John Schlesinger
https://mega.nz/#!y3ICDCZb!8KKoaGAGiY9Qzmv0VQdCcX8xKWe3vO11pyxgPpKNPYY

O Mundo Fabuloso de Billy Liar (1963) - John Schlesinger
https://mega.nz/#!WMs1WL7C!EWsJ_RSYu5nQZqnUpTIMiZqom3ZM8vNpqIooB2op_Wg

Rocco e seus Irmãos (1960) - Luchino Visconti
https://mega.nz/file/PF5F2CxK#dUfjWqY8CN1OybHFqhBcvml9G403M8Fd8oUolrQ2-tU


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Filme Laranja Mecânica – O Controle Totalitário sobre a Natureza Humana

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Na teoria hobbesiana sobre o estado de natureza dos homens existe uma asserção que é bastante conhecida: “o homem é o lobo do homem”. Nessa passagem, Hobbes afirma o caráter maligno da natureza humana que, inserido em uma realidade social, precisa se submeter a um contrato social perante o Estado, para que a sociedade possa estar dentro de uma ordem, livre e pacífica. Não é por menos que o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, trará tal proposição para ser discutida.

Logo no começo do filme, somos apresentados à gangue de Alex, em uma espécie de “boate”, repleta de estátuas em forma de mulheres nuas que fornecem uma bebida similar a um leite para os rapazes. Depois de presenciarmos o ambiente em que os rapazes convivem, adentramos um pouco às suas atividades cotidianas. A gangue de Alex se satisfaz em bater em um velho mendigo sozinho debaixo da ponte, participar de uma briga com uma gangue rival no teatro e estuprar a esposa de um escritor em uma mansão perto da estrada. Todas essas atividades são realizadas com a justificativa de uma “ultraviolência”, necessária para a satisfação pessoal dos rapazes adolescentes.

Depois de conhecermos um pouco sobre as atividades desses jovens “delinquentes”, podemos entender um pouco da vida do jovem Alex – protagonista e narrador do filme. Filho de pais, aparentemente com condições financeiras privilegiadas, ele possui um quarto próprio, preferência por música clássica (Ludwig van Beethoven), um animal de estimação (uma cobra), e parece pouco se preocupar com seus afazeres escolares – em um momento, sua mãe diz que ele não vai à escola por uma semana. Além disso, descobrimos que os pais de Alex desconhecem as atividades que o seu filho realiza fora da escola, ou seja, a sua participação em uma gangue e em atividades violentas. Podemos dizer que entre Alex e os seus pais, há um distanciamento grande, o que gerará problemas no futuro.

Em um desentendimento com os seus “drugs” (companheiros), Alex em uma tentativa de mais um estupro, vai a um SPA, mata uma mulher e logo depois, é alvo de uma traição por parte deles. Então ele é preso e começa o segundo momento do filme, à qual Alex começa a vivenciar a realidade prisional daquela sociedade. As prisões são superlotadas e o ministro do interior procurando uma solução para a diminuição da violência e do crime, permite a alguns cientistas a utilização de um novo método chamado Ludovico, que busca transformar as pessoas más em boas. Assim, o corpo se adaptaria a certas reações fisiológicas negativas para inibir o comportamento violento. O método é similar ao behaviorismo clássico, corrente teórica da psicologia que surgiu no começo do século XX, e frequentemente era utilizado para esses casos na época em que o filme foi realizado.

Acompanhamos o tratamento de Alex que se dispôs a melhorar a sua condição problemática, para poder sair da prisão. No decorrer deste tratamento, seu organismo começa a ser aplicado com vitaminas, e logo depois, ele começa a assistir cenas de violência, guerra e estupros, junto com uma trilha sonora da nona sinfonia de Beethoven. Assim, concluímos que a sua natureza violenta é restringida por certos medicamentos, gerando uma reação de náusea que o impede de cometer qualquer ato que seja contrário às normas sociais. Alex “aprende” a ser bom para viver em sociedade, tal como o contrato social hobbesiano.

Ao sair da prisão, Alex é ressocializado e se torna manchete dos principais jornais, considerando-o como um sucesso para a solução da criminalidade e violência nesta sociedade. Podemos ver que o indivíduo é culpabilizado pela sua situação, tratado pelo Estado como delinquente, e depois de receber o seu tratamento, poderá voltar à sua situação anterior e se adaptar à sociedade, agora como um indivíduo bom. O problema é que Alex já possuía problemas que não eram determinados apenas por uma suposta “natureza má”. Assim, seus conflitos familiares se mostram mais evidentes no segundo momento do filme. Pouco depois de voltar à sua casa, ele é abandonado por seus pais, e por conta disso, é forçado a procurar um lugar para ficar; porém, a sociedade já era violenta antes dele e problemas sociais existiam. Não é por menos que Alex revive todos os atos que cometera antes de ser preso. No decorrer do filme, revivemos a “ultraviolência”, mas dessa vez pelo lado das vítimas. O mesmo mendigo que ele havia maltratado em um primeiro momento, procura revidar o que tinha acontecido consigo. Pouco depois, os seus ex-amigos se tornaram policiais e encontram Alex na rua, o que lhe permitem utilizar da violência do seu cargo para revidarem a violência afligida a eles anteriormente. Depois, Alex entra na mansão, em que tinha cometido o estupro à mulher de um escritor; ele percebe que o seu detrator está em sua casa, e não obstante, utiliza de técnicas para revidar a morte de sua amada, levando Alex a cometer um ato de suicídio. É um círculo vicioso: a violência vai gerando a violência.

Por fim, Alex não morre. Ele é encontrado pelo governo, que passa a tratá-lo da melhor forma possível, pois sua imagem diante da sociedade fora manchada, já que o tratamento utilizado para diminuir a criminalidade levou um indivíduo a quase se matar. Para que o partido possa se eleger nas próximas eleições, Alex é utilizado como propaganda, e em sua situação de abandono social, ele é levado a consentir em ser utilizado e amparado pelo Estado. Percebemos assim que a utilização do método ludovico foi um pressuposto que o Estado utilizou para gerar o controle social e a ordem, não chegando a propor nenhuma resolução dos conflitos sociais, mas apenas uma forma de propaganda para se perpetuar no poder. O que permite afirmar, por parte deles, que o indivíduo seria determinado por uma natureza má e culpabilizado pela sua situação, dando a omissão necessária para que as instituições, tais como a polícia, as prisões, a desigualdade social, os partidos e os governantes, não sejam agentes também determinantes pela situação de violência social naquela sociedade.

Porém, não podemos seguir tal raciocínio, pois consideramos o behaviorismo clássico uma ideologia que parte de premissas científicas consideradas verdadeiras em certo momento, mas que não parte da totalidade das relações sociais, ocultando assim a sua base fundamental: a ciência é permeada por valores sociais que são perpassados por uma classe dominante, criado por indivíduos reais e históricos, e, dessa forma, a sua criação justifica a dominação social. O indivíduo é construído socialmente, e de acordo com os valores sociais e condições históricas, ele poderá ter uma personalidade mais fraternal com os seus próximos, ou mais depreciativa e violenta com os demais. O indivíduo não é mau; ele pode ser tanto mau, bom, individualista ou solidário. A teoria hobbesiana parte de pressupostos de uma teoria política, mas que em sua essência está naturalizando a realidade, através da necessidade de um Estado monárquico (totalitário), assim como o behaviorismo clássico, elevado a um estatuto de uma ciência psicológica, está também naturalizando a realidade, através de uma determinação biológica que condicionará certas ações dos indivíduos, excluindo, portanto, as múltiplas determinações que constroem o caráter psíquico do indivíduo (a sociedade, a sua classe social, os seus valores, o inconsciente etc.). As duas teorias possuem bases insuficientes para a complexa realidade social ali presente.

Colocamos então que o filme possui uma visão crítica, colocando que nessa sociedade distópica existe um conflito de interesses políticos entre os partidos (liberal e conservador) que estão buscando apenas o poder em si, e não o desenvolvimento e melhoramento por uma sociedade mais humana. O governo se utiliza de métodos que restringem as possibilidades dos indivíduos serem livres, o que é criticado pelo padre que não aceita o método ludovico. Portanto, um governo totalitário se utilizará de métodos ideológicos (científicos) que impedem o desenvolvimento da capacidade individual dos indivíduos, e a liberdade da expressão humana de cada um, seja violenta ou pacífica, mostrando apenas que o indivíduo é mau, bom, ou pode ser transformado milagrosamente por um método científico.
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Texto escrito em 2014.
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Mais informações em:

Filme Janela Indiscreta: a metalinguagem no cinema

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A câmera do diretor em um filme representa o olhar do espectador. Ela aponta para a nossa perspectiva dentro daquele universo e, como o “olho do espectador”, nos mostra qual história será contada, e quais personagens acompanharemos, diante de um universo ilimitado. Logo, a nossa visão é limitada, mas as histórias que acontecem ao nosso redor são incontáveis. O imaginário nunca poderá ter um fim.

Dentro dessa observação, podemos dizer que o clássico Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, é um filme sobre filme. Do início até o final do filme, acompanhamos uma única visão (subjetiva), a do personagem Jeffries (James Stewart). Ele, prestes a se casar, está de repouso em sua casa por não poder mais andar, devido a uma perna engessada. Assim, a sua situação é como uma “sala de cinema”; ele está preso em sua cadeira de rodas e a sua única visão de mundo é a sua janela do seu quarto, à qual ele observa os seus vizinhos diariamente com um binóculos (o espectador).

Entre discussões com a sua namorada Lisa (Grace Kelly) e sua diarista Stella (Thelma Ritter), Jeffries consegue convencê-los de que houve um assassinato no prédio em frente, e à medida que a história avança, pistas vão sendo dadas e o caso parece tomar forma. Hitchcock é hábil, maneja a sua câmera como um voyeur, nos direcionando para várias histórias que existem no prédio em frente, sem que estejam diretamente relacionadas ao assassinato, de modo que os binóculos de Jeffries direcionem o nosso olhar. Em cada apartamento existem várias histórias diferentes, personagens distintos e situações que nos levam a imaginar várias situações. Podemos nos perguntar: Por que a mulher passa a noite sozinha se fantasiando com um encontro? Quem seria o enamorado da bailarina? De fato, houve um assassinato?

As perguntas podem ou não serem respondidas, mas não é o que nos interessa aqui. O filme é sobre um filme e estamos dentro dele como um observador. Diante de um desfecho possível (ou não) de um suposto assassinato, o que nós precisamos são de pistas (imaginárias) que nos levem a acreditar nisso. Hitchcock conhece o cinema como poucos e o seu poder está sempre em evocar o imaginário do espectador, seus medos, emoções e suas angústias, como um “ilusionista” – sabemos que a imagem não é real.

Por fim, a câmera é a nossa visão para o mundo, pois é nele que construímos as histórias. Ao acompanharmos o filme, somos transportados para aquele universo, como observadores. Cada apartamento possui histórias diferentes e personagens diferentes para novos filmes. Cabe a nós darmos um sentido a isso: visualizar o mundo como uma câmera, contribuindo com a nossas histórias.
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Texto escrito em 2012.
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Filme Freud – Além da Alma

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O filme sobre Freud inicialmente, teve o seu roteiro feito por Jean-Paul Sartre, que tinha enorme interesse pela psicanálise, e direção com o aclamado John Huston. Entretanto, a experiência de Sartre com cinema era praticamente nula e Huston teve que fazer novas adaptações, dirigindo um filme mais enxuto, sem (ou quase nenhuma) influência do roteiro feito por Sartre. Podemos ver que o filme, estrelado por Montgomery Clift (Freud), faz um recorte da vida de Freud, contando as suas primeiras experiências como médico e as primeiras fundamentações das posteriores teorias freudianas.

Freud, em sua época como médico, estava começando a clinicar alguns pacientes. Analisando o problema da histeria, ele começou a se interessar por análises que se utilizavam da hipnose, técnica que consistia em deixar o paciente relembrar de fatos no passado, no seu sono, para quando ao acordar, remediar alguns sintomas que lhe atormentavam. No entanto, depois de acordar os pacientes, os sintomas cessavam, mas após um tempo, eles voltavam, o que lhe dava um caráter bastante deficiente para o método. Nas conversas entre Freud e o seu colega Breuer, o primeiro começa a relatar as suas ideias sobre a neurose e a relação com a sexualidade, enquanto o segundo critica um pouco a determinação sexual que Freud colocava em suas hipóteses. Porém, no decorrer de suas próprias auto-análises, Freud foi percebendo através dos seus sonhos que a relação conflituosa que ele tinha com seu pai, decorria de um Complexo de Édipo (termo que ele utilizará posteriormente). Assim, umas das questões mais importantes para o sistema freudiano são as fases sexuais que são desenvolvidas na infância – uma novidade na época –, que se não tivessem um desenvolvimento saudável, acarretaria em traumas no futuro.

Na análise da paciente que é retratada no filme, Ana O., Freud vai percebendo que existe um trauma na sua infância, causado por uma repressão dos instintos sexuais na infância, o chamado recalque, devido a um desejo não atendido pelo pai de Ana na sua infância. Depois da sua descoberta, Freud vai a um congresso em Viena para relatar um pouco sobre os seus estudos sobre a sexualidade infantil, porém, a maioria dos médicos ali presentes não concordam com sua visão, e começam a se retirar. Até mesmo o seu colega Breuer, apesar de admirá-lo, vê que Freud coloca o comportamento sexual como sendo o determinante psíquico do indivíduo, o que não é totalmente correto.

Podemos destacar que o percurso de Freud é inovador para sua época. Tratando de métodos novos (a associação livre, a interpretação dos sonhos) ele começa a questionar os paradigmas da psicologia até então vigentes, dando ênfase à subjetividade e também a uma auto-análise. O filme conclui com um olhar de Freud sobre a lápide de seu pai, onde nela está escrito a mensagem: “Conheça a si próprio”. Podemos entender que o trabalho do psicanalista tem o pressuposto de uma relação recíproca entre paciente e analista, descobrindo e solucionando os seus conflitos individuais de forma com que cada um possa entender mais sobre o seu aparelho psíquico – o inconsciente.
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Texto escrito em 2014.
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Filme Muito Além do Jardim

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Como poderíamos relacionar o papel da televisão com a formação do indivíduo? Hoje a pergunta não se faz tão pertinente, pois existem outros meios de comunicação mais utilizados do que este, mas na década de 70, em plena Guerra Fria, não podemos ignorar a crescente massificação que a televisão veiculava em sua limitada programação. Grande parte das pessoas construíam o seu imaginário, os seus valores, ideias e crenças através desse poderoso meio de comunicação, fazendo deste um componente fundamental da sua própria vida. É nesse ponto que o belo filme de Hal Ashby toca.

Muito além de um jardim poderia ser uma fábula, mas não é. A história é centrada no jardineiro Chance (Peter Sellers) que foi criado desde pequeno pela criada Louise, e agora, encontra-se perdido, sem ter para onde ir, pois o dono da casa onde ele estava empregado, morre, e deixa a propriedade sem nenhum herdeiro. Nas cenas adiante, descobrimos que todas as experiências deste indivíduo estão reduzidas a apenas duas coisas: a televisão e o jardim. E podemos notar que o seu vínculo com a realidade, ainda se faz por causa do segundo, enquanto a outra parte de sua vida se reflete em uma mímica, uma imitação da realidade televisa. Notamos esses as características superficiais de Chance, logo na cena no começo do filme, em que o senhor da casa morre, a empregada relata o acontecimento a Chance e espera dele uma reação, o que não vem a acontecer. Em um primeiro momento, ela fica nervosa, mas logo depois, ela relembra que o indivíduo nunca se relacionou com ninguém, e dificilmente poderia expressar alguma emoção. Seria a culpa dela, por Chance nunca ter saído da casa e ter conhecido o mundo “real”? Ou, a televisão sempre o manipulou de tal forma que os relacionamentos entre os seres humanos se reduziram àquela superficialidade veiculada por ela mesma?

Dessa forma, tratarei aqui de interpretar a história pela segunda opção. Uma leitura poderia apontar o filme como uma crítica ácida, um desvelamento de uma realidade massificada em que as pessoas aceitam, sem julgar, toda a realidade construída pela televisão. Ao acaso, ele é confundido com um empresário rico, e sob os cuidados de uma família milionária, recebe um tratamento por parte desta, já que havia sido acometido por um acidente de carro. Então, gradativamente ele vai se mostrando uma pessoa confiável, perspicaz e, à medida que ganha notoriedade, vai começando a ocupar o futuro espaço político nos EUA.
Assim, não é ocasional que Chance se torne uma pessoa reconhecida pelo público, ganhando fama entre os figurões do alto escalão e ele próprio, se tornando uma estrela dos programas em que assistia. Os indivíduos que estão inseridos dentro deste espaço são pessoas como ele, alienadas pela própria realidade televisiva, que para estarem adequadas dentro deste meio, precisam conhecê-lo e se conformarem por segui-lo. Em um momento do filme, a jornalista afirma:

- É interessante ver a sinceridade de Chauncey por dizer que nunca lê jornal.

A afirmação da jornalista confirma o que todos precisam fazer para estarem dentro do espaço público. Para serem famosos e reconhecidos, eles precisam fazer parte da grande mídia. Mesmo os indivíduos que contestam a sua existência, como no caso do filme Rede de Intrigas, ainda assim há espaço para eles. Porque na televisão tudo é reduzido a um espetáculo, salvo Chance que ainda preserva o seu humanismo, pela sua metáfora do jardim. O que exemplifica a questão moral que nos coloca um elo entre a nossa existência e pertencimento a este mundo. Quando Chance aparece na vida da família milionária, o ambiente muda e sua importância se faz presente por fazer aparecer novamente os sentimentos vivos que os deixavam atordoados. O que explica toda a nossa existência aproxima-se de questões humanistas, na confiança e empatia que temos um pelo outro, algo relatado por Ben, antes de saber que irá morrer e por Eve, depois de se sentir amada novamente. Por isso, a verdadeira expressão da realidade, explicação de todos os problemas, seja econômicos ou políticos, está além da compreensão deles mesmos, e se faz presente no jardim, no cuidado com o que nós temos com o nosso mundo e com o próximo. O que causa a admiração de todos no filme, que não compreendiam a sabedoria de um homem comum, iletrado e pobre, mas que tinha consigo mesmo uma qualidade especial: humanidade.
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Texto escrito em 2012.
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Filme Dogville

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Nesta obra de Lars Von Trier, filmada no ano de 2002, acompanhamos a história de Grace, uma mulher que ao fugir de mafiosos, vai parar em uma cidade minúscula chamada Dogville, que possui pouco mais de dezenas de habitantes. O período da história situa-se no ano de 1930, o ano da depressão econômica nos EUA.

A grande característica visual desse filme é a exclusão dos cenários, sendo substituídos por marcações de giz. Uma técnica, a princípio, ousada, que depois é entendida como um excelente recurso técnico usado pelo diretor, para enriquecer a proposta temática do filme.

Na cidade de Dogville, o que pode ser traduzido como “cidade de cachorro”, conhecemos um lugar que está localizado em uma região periférica. Não há estradas, escolas e hospitais; porém, existe uma prisão um pouco afastada da cidade, uma montanha não muito distante e um agente da lei, que informa todos os dias aos habitantes, sobre os problemas da cidade. Em uma sociedade como essa, mesmo distante dos problemas econômicos das cidades grandes, os cidadãos vivem isolados e sem muitas perspectivas de vida, contrastando com uma mina de minério abandonada, que poderia ser fruto de grandes riquezas no passado.

O diretor foca sua câmera em planos abertos e verticais, revelando a natureza da cidade e demarcando a divisão social, ali presente. Cada cidadão tem um trabalho bem definido, o que confere uma sociedade planificada, à qual o trabalho é realizado em horários definidos e com funções específicas. Apesar dessa universalidade, ocasionada por uma falta de cenários, que pode ser visto como um meio de aproximação entre as pessoas, já que não existem “barreiras” entre elas, os indivíduos ali presentes, parecem estar imersos em um individualismo, em que existe uma preocupação com o bem-estar de todos, ao mesmo em que cada um parece se importar apenas com o seu “eu”.

Diante desses problemas, uma estrangeira chega à cidade e tenta inserir-se naquela sociedade, com o intuito de se tornar cidadã. Confrontada por eles em uma votação na igreja, ela é convencida a realizar trabalhos por algumas semanas, a fim de que se faça outra votação, para decidirem se ela poderá ou não fazer parte daquela cidade.

É interessante perceber o papel inocente e belo de Grace, que em seus próprios valores, apreende aquela realidade como sendo diferente das demais – ela fugia dos problemas com a família. Em um primeiro momento, as pessoas parecem acolhedoras e familiares, mas com o passar do tempo, elas começam a demonstrar hostilidade e mostram o lado mais cruel do ser humano. Através do mediador, chamado Thomas Edison, presenciamos uma experiência social de transformação. Aliás, o nome Thomas Edison, sugere o nome do inventor da lâmpada elétrica. O que é curioso, pois ele deveria ser o “iluminador” no caminho de Grace, mas em uma democracia em que a maioria decide os rumos do todo, de modo irracional, ele não pode fazer nada, além de aceitar a situação de sua anfitriã. Assim, Dogville à primeira vista, poderia ser uma cidade qualquer, mas em um segundo momento, ela se transforma no pior inimigo aos valores morais e humanos, presentes em Grace. Ela é corrompida e transformada em objeto.

A presença de uma estrangeira é tratada como um estudo de alteridade para aquela sociedade. À medida que Grace vai sendo abusada sexualmente, e começa a acumular trabalhos, isso se reflete mais ainda na maneira com que as pessoas, isoladas de si mesmas e do mundo, tratam o “outro”, o próximo. Apesar dos esforços do mediador, em tentar fazer uma conexão e perguntar às pessoas o que acham da presença dela na cidade, todas as tentativas são frustradas, pois o estrangeiro não pode ser aceito. Com a total desistência do mediador em tentar esse contato, Grace fica em total rejeição e, abandonada, tenta fugir da cidade.

Com a chegada dos mafiosos, o que resta agora para os habitantes de Dogville é o fim de sua existência. Depois de uma completa rejeição a uma estrangeira, eles são eliminados após uma breve reflexão de Grace, que conclui: “o mundo seria melhor sem essa cidade”. O que de fato pode ser perfeitamente compreensível para a personagem, é crítica para a nossa realidade atual. Em uma sociedade, digamos “civilizada” e desenvolvida, parece claro que os indivíduos vivem em total integração com o próximo, e cientes que devem prezar pelo bem estar comum. O que podemos interpretar na obra de Lars Von Trier, é entender como um sistema fechado de relações sociais, em que o interesse egoísta de cada um, funciona como uma barreira que se mostra incapaz de atravessar, causando assim um rompimento entre as pessoas. Aqui se justifica a sua opção estética, como uma bela ironia.

A questão é o individualismo e o fim da sociabilidade entre os seres, que é a grande pergunta do mundo pós-moderno. O que sempre pensamos como um problema amplo, e refém apenas de grandes sociedades, podem ser encontrados em uma cidade isolada e deserta, chamada Dogville, onde mesmo com uma divisão social bem simples, existem problemas tão universais e complexos, que estão presentes em todos nós.
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Texto escrito em 2014.
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Filme O Abutre

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O filme nos mostra a trajetória de ascensão do personagem, denominado Louis Bloom, que, aos poucos, começa a produzir cada vez mais reportagens. Toda essa trajetória não é realizada de uma forma "aceitável", ou digamos, ética. Ela é inescrupulosa, condenável, pois a cada passo que o personagem avança, percebemos que estamos emaranhados em um conjunto de relações que são tão cruéis quanto o trabalho que Louis realiza. Assim, a diretora de um programa de jornal em uma emissora de tevê não vê problemas na transmissão de reportagens cada vez mais violentas, cruas e trágicas; os apresentadores desse mesmo jornal narram tais reportagens, como se fossem um espetáculo televiso que precisa ser noticiado incessantemente; a direção da emissora de tevê não mede esforços para manter essa forma de jornalismo para conseguir aumentar a audiência; entre outras relações envolvidas na trajetória de Louis que vão revelando as engrenagens de uma sociedade apodrecida. Portanto, o abutre do título do filme não se refere apenas ao Louis, o personagem principal que filma cadáveres mortos ou semi-mortos em busca do sucesso profissional, mas também àqueles que permitem que esses indivíduos, especialmente um Louis Bloom, consigam conquistarem espaço na sociedade através dessa forma de trabalho.

Por isso, o jornalismo abordado no universo ficcional é desumano, mas ao mesmo tempo tornou-se prática comum, conquanto a sociedade ainda permita que a vida das pessoas seja quantificada através do cálculo da audiência televisiva. Logo, o lucro dessas empresas de jornalismo, entre diversas outras empresas na sociedade capitalista, são assim, produto da carniça, da exploração de vidas humanas e essa forma de atividade não está restrita a Louis, infelizmente, mas amplia-se a centenas e milhares de indivíduos que buscam manter e reproduzir essa sociedade através da exploração e da "desgraça alheia".
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Texto escrito em 2019.
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terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Revistas sobre Cinema

Cinestesia - USP

O Mosaico – Revista de Pesquisa em Artes da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR)
http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/mosaico

Textos com Análises e Comentários de Filmes e Documentários


A Chinesa e o Cinema Político de Godard - Roberto Acioli de Oliveira


A Onda - João Bernardo


'Machuca' e a questão da igualdade na diferença - Héricka Wellen

Mensagem e universo ficcional em À nous la liberté  - Gabriel Teles


O encouraçado Potemkin, Outubro e a Revolução russa: usos da história no processo criativo de Sergei Eisenstein - Pedro Vinicius Asterito Lapera

O Enigma de Kaspar Hauser: o cinema como expressão dos valores e da linguagem - Verônica Moreira & Veralúcia Pinheiro

“O Leitor” e a crítica da racionalização da irracionalidade - Henrique Wellen

Realidade, Aparência e Controle em The Truman Show - Lucyan Butori

Rota Irlandesa, a crítica de Ken Loach ao imperialismo contemporâneo - Henrique Wellen
https://passapalavra.info/2010/11/31898/

Trabalho e estranhamento no filme 'A última gargalhada' - Michel Silva

Textos com Análises e Comentários de Nildo Viana sobre Filmes e Documentários

"A Grande Ilusão" ou A Política Como Ela É

A Utopia no universo fictício de Léo Joannon

A verdade sobre o cidadão Boilensen
https://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/13/pdf

"Escritores da Liberdade" ou liberdade dos escritores?
http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2011/01/escritores-da-liberdade-ou-liberdade.html

Garrincha, Alegria do Povo
http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2011/02/garrincha-alegria-do-povo.html

Filmes de Zumbi e Crítica Social
https://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2011/01/filmes-de-zumbi-e-critica-social.html

Michael Curtiz: Aventura e Reflexão

O Barão de Munchausen contra a Razão Instrumental
https://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2009/03/o-barao-de-munchausen-contra-razao.html

O Fim dos Tempos ou Revolta da Natureza?
https://informecritica.blogspot.com/2015/03/o-fim-dos-tempos-ou-revolta-da-natureza.html?m=0

O Mecanismo e a corrupção brasileira
http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2018/04/o-mecanismo-e-corrupcao-brasileira.html

O Público e o Privado no Edifício Master
Pearl Harbor: manifestação de valores axiológicos no cinema

Uma Ponte para a Imaginação Infantil

Livros e Artigos sobre Cinema

Análise fílmica: uma assistência crítica - Leonardo Proto

Anos 1950/1960: sonhos de autonomia - Mônica Cristina Araújo Lima
Estudos de Cinema na universidade brasileira - Fernão Pessoa Ramos

Livro: Indústria Cultural e Cultural Mercantil (Org. Nildo Viana)


O Cinema como Prática Social - Graeme Turner

O filme contextualizado – diálogos entre sociologia e cinema - Gilmar Santana

Os pioneiros do cinema brasileiro - Carlos Roberto de Souza

Panorama da historiografia do cinema brasileiro - Arthur Autran

Prefácio da obra Cinema e Mensagem: Para entender as produções cinematográficas - Edmilson Marques

Prefácio da obra A Concepção Materialista da História do Cinema: Repensando a História do Cinema - Jean Ísídio dos Santos

Sociologia e Cinema: aproximações teórico-metodológicas - Paulo Menezes

Sociologia e Cinema: O Uso do Audiovisual na Aprendizagem de Sociologia no Ensino Médio - Gilmar Santana & Luiz Rachetti