sexta-feira, 26 de março de 2021

A Repressão à luta operária em Ådalen 31

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Texto complementar:

Os tiroteios em Ådalen na Suécia, 1931 - Anders Sundstedt

Em 14 de maio de 1931, nos arredores do pequeno município de Ådalen, os militares suecos abriram fogo com uma metralhadora pesada sobre manifestantes pacíficos. Quatro manifestantes e um transeunte foram mortos a tiros e outros cinco manifestantes foram feridos. Este artigo descreve o que ocorreu.

Contexto

Durante o verão de 1930, houve um conflito contínuo em uma fábrica de sulfato em Marmaverken. O proprietário queria reduzir a remuneração e quando os operários entraram em greve, foram contratados fura-greves ("scabs") para garantir a produção. O proprietário da fábrica, Gérard Versteegh, também era proprietário de outras fábricas e terrenos e o conflito acabou se espalhando por estes lugares à medida que os operários entraram em greve de solidariedade a fim de apoiar seus companheiros na fábrica de sulfato.

Na primavera de 1931, como os rios e lagos tinham se desobstruído do gelo, a empresa procurou começar a enviar o estoque de celulose de papel que se acumulou durante o inverno. Como os operários também fizeram um bloqueio sobre isso, a empresa decidiu trazer os "scabs" (a empresa se referiu a elas como "pessoas dispostas a trabalhar") a fim de iniciar o carregamento e a expedição.

Em 12 de maio (ou 13 de maio, as fontes variam), cerca de 60 fura-greves chegaram a Ådalen e imediatamente começaram a trabalhar. Isto fez com que as tensões aumentassem quase até o ponto de ruptura e, no dia 13 de maio, cerca de 500 manifestantes se reuniram e marcharam para o estoque de celulose. Quando chegaram ao estoque e viram os "scabs" carregando um navio a vapor, eles intervieram para interromper o carregamento. A maioria dos fura-greves fugiu ao ver os manifestantes, mas alguns tentaram se esconder no compartimento de carga do navio, mas foram confrontados e obrigados a prometer que voltariam para casa.

Como a força policial local não conseguiu evitar isso, e para proteger os fura-greves, o governador do condado recorreu ao exército, pedindo-lhes ajuda. Na noite do dia 13, 60 homens sob o comando do capitão Nils Mesterton chegaram a Ådalen e incluíram tanto a infantaria e uma tropa montada quanto um pelotão de metralhadoras. Naquela tarde e durante a noite, houve uma série de pequenos incidentes, incluindo o lançamento de pedras. Os militares responderam com tiros de pólvora seca e atiraram granadas de fumaça.

Os tiroteios

No dia 14 de maio, os sindicatos locais realizaram outro comício e foi decidido que marchariam novamente para a casa de hospedagem. Desta vez, o número de manifestantes foi muito maior; as autoridades locais estimaram que 3.000 a 4.000 pessoas participaram, outras estimativas dizem que até 7.000. A ideia era marchar até o limite "sem invasão" que as autoridades haviam declarado, e então retornar. Naquele momento, os manifestantes haviam sido citados na Lei de Insurgência, declarando que quem não obedecesse às ordens emitidas pelas autoridades, seria considerado um insurgente e seria tratado de acordo.

Quando os manifestantes chegaram a Lunde, nos arredores de Ådalen, a estrada havia sido fechada pelos militares e estes ordenaram a dispersão e retorno daqueles. Enquanto os manifestantes continuavam a marchar, a tropa montada tentou detê-los. Uma das tropas caiu do cavalo e depois sacou sua pistola e disparou um par de tiros de advertência. O capitão Mesterton ordenou agora que os manifestantes parassem e os advertiu que, a menos que eles cumprissem, ele abriria fogo.

Os manifestantes continuaram empurrando e a uma distância de menos de 100 metros, a metralhadora começou a tocar sua música mortal e não parou até que um membro da banda marchante do sindicato conseguiu tocar o sinal de "cessar fogo" em seu trompete.

À medida que a fumaça da metralhadora se dissipava, quatro operários desarmados e um transeunte estavam mortos e outros cinco operários haviam sido feridos. Mesterton afirmaria mais tarde que tinha visto armas entre os manifestantes, mas a investigação que se seguiu determinou que nenhum dos operários estava armado.

O disparo da metralhadora não foi dirigido diretamente aos operários, mas a um ponto na metade do caminho entre a arma e os manifestantes. Ricochetes atingiram os manifestantes, causando assim as baixas. Como capitão da infantaria, Mesterton deve ter percebido que os ricochetes não desapareceriam apenas e, portanto, é difícil tirar qualquer outra conclusão além de que Mesterton não se preocupou realmente com o possível resultado de seu plano.

Esta conclusão é apoiada pelo fato de que ele escolheu usar a metralhadora, uma arma muito mais poderosa, em vez de deixar os soldados usarem seus rifles.

Consequências

Mesterton, juntamente com alguns outros soldados, foi levado ao tribunal militar, mas foi absolvido de todas as acusações. Mais tarde, ele foi promovido a major e depois tenente-coronel.

Quatro dos operários mortos foram mais tarde enterrados em uma cova comum e uma inscrição na pedra decorou o túmulo. Pode-se ler:

Aqui jaz
um trabalhador sueco
caído em tempo de paz
desarmado, indefeso
executado
por balas desconhecidas
O crime foi a fome
Nunca esquecê-lo

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Traduzido por Felipe Andrade. Fonte: https://libcom.org/history/adalen-shootings-sweden-1931.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Eles Vivem - A Crítica social da Dominação Cultural Burguesa

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* Avisamos ao leitor que o texto visa realizar uma assimilação do filme Eles Vivem (1988) de John Carpenter, de acordo com fins políticos e dando um significado particular ao filme que não condiz exatamente com o significado original da obra. Assim, fazemos um exercício de livre reflexão sobre o filme, tendo como base o material disponível no universo ficcional daquele. Em determinados momentos, a reflexão condiz com elementos do universo ficcional presentes no filme, e em outros não.
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O filme de ficção científica Eles Vivem trata de uma sociedade na qual os seres humanos são dominados e explorados por alienígenas. A forma como ocorre tal dominação e exploração, assemelha-se aos meios existentes na sociedade capitalista, o que transforma o filme em uma metáfora da luta de classes na realidade. Desse modo, os alienígenas formam a classe capitalista, enquanto os seres humanos são divididos em várias classes sociais. Dentre estas diversas classes sociais, a classe trabalhadora continua sendo explorada e dominada, ao passo que a classe capitalista e suas auxiliares visam reproduzir a sociedade existente. 

Na trama do filme, temos um operário sem nome (Nada) que chega na cidade para arrumar um emprego. Em seguida, ele consegue um trabalho na construção civil, relacionando-se a partir daí com Frank, outro operário. Interessante notar a solidariedade entre ambos, o que obviamente contrasta com o egoísmo presente entre a classe dominante e a busca pela defesa de seus interesses pessoais, sobretudo o lucro. Logo depois do trabalho, Frank e Nada vão para um acampamento, próximo de uma igreja, no qual vários indivíduos desempregados, sem tetos, vivendo de condições precárias compartilham um assentamento urbano. Um dos líderes desse acampamento é Gilbert, que logo recebe Nada, acolhendo-o ali em diante com os demais indivíduos da classe trabalhadora, subalternos ou do lumpemproletariado. Dentro do cotidiano desses indivíduos, em meio aos problemas de desemprego, fechamento de fábricas etc., percebe-se o total conformismo, submissão e aceitação da realidade existente. O operário e andarilho Nada, por exemplo, diz em um diálogo que é um cidadão comum, acredita nos EUA e segue as regras.

Aos poucos percebemos que as televisões da cidade (ou mesmo do país) têm recebido uma interferência, na qual um senhor aparece na programação e começa a questionar a dominação e o controle que grande parte da população tem aceitado, sem se dar conta disso, ou mesmo revoltar. Assim, as pessoas são tratadas como gado, escravos e nada fazem para mudar esta condição. Ao lado do acampamento, há uma igreja que é um local de reunião para um grupo revolucionário, este que é justamente o responsável pelas interferências na programação da televisão. Tal situação vai permitir a John o avanço de sua consciência. Em certo momento, a igreja é invadida pela polícia, que utilizando da sua habitual repressão destrói o acampamento e a igreja. Nada percebe essa situação, vai até a igreja, descobre uma caixa com uns óculos e experimenta usar, no dia seguinte à destruição por parte da polícia.

Os óculos de sol que o operário utiliza gera uma mudança impressionante em sua “visão” da realidade e do mundo ao seu redor. Nada começa a enxergar as mensagens por detrás da publicidade, os discursos como realmente são na televisão e os alienígenas disfarçados de seres humanos. As mensagens reveladas pelos óculos reproduzem os ideologemas, valores, sentimentos e representações cotidianas ilusórias na sociedade burguesa, cuja finalidade é a reprodução da hegemonia da classe dominante, ou do que alguns chamam de “status quo”. Os óculos possibilitam romper com a hegemonia burguesa, desvelando a cultura da sociedade capitalista em seus inúmeros aspectos. Assim, mensagens como “obedeça”, “case e se reproduza”, “não há livre pensar”, “consuma”, “durma”, “compre”, “não pense” e “assista televisão”, revelam ideias que interessam à classe burguesa. A autonomia, a verdade, a igualdade, a reflexão intelectual, o bem-estar mental e físico, questões que deveriam ser compartilhadas e vividas em uma sociedade emancipada, devem ser evitadas e reproduzidas a fim de manter a dominação e exploração por parte de uma classe dominante.


Por isso, o operário Nada logo sofre um “choque de realidade”, na medida em que os seus verdadeiros interesses são revelados por detrás da falsidade que permeou toda a sua existência. Não é por acaso que logo depois de utilizar os óculos, ele começa a matar os alienígenas, tornando-se um guerrilheiro armado que logo depois é perseguido pela polícia. Assim, ele sequestra uma mulher, chamada Holly Thompson, diretora do canal 54, mas logo é repreendido por ela e foge de sua casa. Em seguida, Nada consegue fugir da polícia e encontra Frank. Ao encontrar Frank, Nada tenta convencê-lo da necessidade de utilizar os óculos e enxergar a realidade como ela é realmente, partindo de outra perspectiva que não seja a da classe dominante. Após alguns minutos de brigas e discussões, Frank coloca os óculos e juntamente com Nada, desperta do sonho em que estava adormecido.

Frank e John Nada se unem na luta contra a dominação alienígena, quando começam a utilizarem os óculos. Dessa maneira, dois operários avançam a sua consciência para uma perspectiva crítica da realidade e começam a lutar pela emancipação humana a partir da destruição da hegemonia burguesa controlada pelos alienígenas. Ambos encontram Gilbert, um dos líderes do grupo revolucionário que criou os óculos, que, por sua vez, chama eles para uma reunião estratégica de planejamento e organização para enfrentarem os alienígenas nessa sociedade. O problema é que existem diversos obstáculos, e um deles é o problema de os próprios seres humanos terem sido cooptados pelos alienígenas, tornando-se auxiliares da classe exploradora. Geralmente, tais indivíduos que auxiliam fazem parte das classes superiores, ou seja, das classes auxiliares da burguesia que são a classe burocrática e intelectual. O plano do grupo revolucionário consiste no desligamento de um sinal do satélite criado pelos alienígenas, com a função de manter a reprodução da sociedade por meio das mensagens e ideias reproduzidas pelo capital comunicacional, principalmente o capital televisivo.

Acontece que o esconderijo do grupo revolucionário é descoberto e, por sua vez, invadido pela polícia que começa a exterminar todo mundo. No meio disso, Frank e Nada conseguem fugir, utilizando de um relógio alienígena que abre um portal e leva-os para a base secreta dos aliens. Nessa base, os dois heróis iniciam uma luta dentro do prédio, até chegar à central da rede de televisão 54, lugar em que o sinal de satélite que veicula as ideias dominantes se localiza. Assim, Nada consegue chegar até o terraço, avistar a antena e destruí-la com o armamento de fogo que estava em sua posse. A partir disso, com a destruição da transmissão de satélite que os alienígenas mantinham, a verdadeira face deles é revelada, gerando um intenso furor e choque entre os seres humanos.


O principal tema que podemos analisar nesse filme é a dominação cultural burguesa que ocorre na sociedade capitalista. Além da relação de exploração que ocorre no processo de produção, há também em nossa sociedade o aparato estatal e seus diversos aparatos (educacional, comunicacional, repressivo etc.), bem como o capital comunicacional, que visam garantir a reprodução e a acumulação de capital. O que ganha destaque nesse filme é o aparato comunicacional, ou seja, o capital comunicacional privado e estatal que veicula através de mensagens, nos seus diversos meios tecnológicos de reprodução (tv, rádio, cinema etc.), as concepções, representações, sentimentos, ideologemas, etc., que servem para a manutenção da hegemonia burguesa na sociedade. Há, portanto, todo um universo cultural que impede os indivíduos de enxergarem a possibilidade de transformação social radical e total da sociedade capitalista.

Assim, um dos motivos dos indivíduos não se rebelarem ou lutarem pela transformação é a cultura burguesa que busca legitimar a realidade existente. Desse modo, o filme ajuda a compreender esse elemento, mostrando que a televisão, a publicidade, o consumo, entre outros elementos servem para legitimar a sociedade burguesa como ela é. Os valores como a hierarquia, a submissão e o consumo, são introjetados na mentalidade dos indivíduos, fazendo com que eles aceitem as relações sociais como naturais, eternas e imutáveis. Portanto, os indivíduos não apenas aceitam a sociedade como ela é, mas desejam-na, agem como se tais valores fossem realmente importantes em sua vida. Logo, na perspectiva do materialismo dialético, as ideias também possuem força material, atuam na realidade e podem ser um dos elementos que ensejam mudanças ou não. O filme Eles Vivem contribui justamente na percepção de que determinadas ideias podem ser falsas, inautênticas e, portanto, devem ser combatidas e criticadas, desvelando a verdadeira face daqueles que dominam e exploram em nossa sociedade. Por detrás de cada alienígena, há um capitalista disfarçado no cotidiano que luta para manter os seus interesses, em detrimento da miséria da classe trabalhadora que se mantém sufocada e reduzida aos seus interesses imediatos que correspondem à manutenção da sociedade burguesa. Dessa maneira, o filme revela uma mensagem de crítica social, de modo que ele é um instrumento de luta cultural. A mensagem abre brechas para que a luta contra a classe dominante seja possível, despertando a classe trabalhadora das cadeias da exploração e para a necessidade de lutar pela transformação dessa sociedade.  

Leitura recomendada:
Luta de Classes e Universo Cultural - Nildo Viana

Universo Psíquico e Reprodução do Capital - Nildo Viana

sábado, 6 de junho de 2020

Minicurso Cinema e Crítica Social - Concepção Dialética da História do Cinema

Minicurso Cinema e Crítica Social - Pressupostos Teórico-Metodológicos (Parte I)

Minicurso Cinema e Crítica Social - Concepção Dialética da História do Cinema (Parte II)

A Duvidosa Virtude da Propaganda: “Terra e Liberdade” de Ken Loach - Gilles Dauvé


Texto originalmente publicado no site Crítica Desapiedada.

O filme Terra e Liberdade goza de grande reputação em círculos militantes. O propósito deste texto não é questionar esta reputação do ponto de vista de um crítico de cinema: o objetivo neste caso serão as questões políticas e teóricas.
Tampouco nos limitaremos às questões estéticas.
Alguns indivíduos são favoráveis à ambiguidade na arte, permanecendo distantes de romances com uma mensagem, e acreditando que é com nobres sentimentos que a má literatura é escrita (e provavelmente a má teoria também).
Outros depreciam a “arte pela arte”, e preferem a ficção que mostre questões sociais sem ter grandes pretensões.
Não entraremos nesses debates. Este trabalho é exclusivamente sobre Terra e Liberdade, não sobre a filmografia de Ken Loach ou sobre suas posições políticas.
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Primeiro, um breve resumo para aqueles que não assistiram ao filme (lançado em 1995).
Quase toda a narrativa é um flashback. Uma jovem mulher descobre o passado do seu avô, David, falecido recentemente. Na década de 1930, David, um jovem trabalhador, e membro do Partido Comunista da Inglaterra, vai à Espanha lutar contra o general Franco. Ainda que sua intenção original fosse integrar as Brigadas Internacionais, ele termina sendo integrado a uma pobremente equipada milícia do POUM [Partido Operário de Unificação Marxista] no front de Aragão, junto a homens e mulheres, voluntários de toda a Europa. Uma delas é Blanca, uma ardorosa defensora do POUM. David se sente atraído por ela.
Quando é ferido, David vai a Barcelona, onde se une às Brigadas Internacionais. Em maio de 1937, quando o Estado republicano, apoiado pelos stalinistas, finalmente recupera o controle da cidade e se livra dos elementos radicais, David, primeiro, fica do lado das forças governamentais, até que, posteriormente, rompe com o partido e volta a ver a sua antiga companheira.
Entretanto, a milícia do POUM está em grave situação. As Brigadas Internacionais, primeiramente, negam-lhe qualquer apoio militar, para logo forçá-la a debandar (o POUM havia sido acusado de agente do fascismo). No meio desse conflito, Blanca é morta.
Retornando ao presente na Inglaterra, no funeral de David, vemos seus velhos camaradas de armas na Espanha. O filme termina com uma saudação com punhos erguidos.
Como mostrado neste resumo, o filme desenvolve eventos de grande importância histórica, poucas vezes vistos nas telas de cinema. Casos similares, como o filme de Sam Wood, Por Quem os Sinos Dobram, produzido em 1943, quando a Rússia e os Estados Unidos lutavam juntos contra Hitler, apresentou o campo antifascista como uma frente unida, em sintonia com o romance de [Ernest] Hemingway que inspirou o filme. A temática de Terra e Liberdade é uma que raramente se aborda no cinema.
O problema é que, em vez de problematizar e instigar o debate crítico sobre esses eventos, a narrativa é feita de uma maneira que força conclusões como se fossem autoevidentes para o espectador, e, em última instância, esvazia o debate político.
Isto não quer dizer que não haja debate político no filme. Pelo contrário. Uma das cenas mais longas (12 minutos) do filme, e uma das mais importantes, segundo o próprio Ken Loach, descreve uma discussão sobre a coletivização em uma vila libertada pela milícia do POUM. A coletivização deve ser implementada imediatamente ou não? Um americano argumenta que a guerra contra Franco deve ser prioritária, e recomenda aos moradores que não tomem medidas radicais que impeçam que as democracias capitalistas apoiem a República em seu esforço antifascista. Em contraste, um voluntário alemão propõe que a guerra e a revolução devem estar de mãos dadas. A reunião se declara, então, a favor da coletivização. Esta cena está claramente no núcleo da questão.
Assistir a um filme, no entanto, é diferente de ler e escolher posições políticas no papel. O observador encara uma tela: os personagens atuam em uma sucessão de cenas, e a forma pela qual cada cena ganha relevância, depende do que é mostrado antes e depois ao espectador. Neste caso, a discussão sobre “guerra versus revolução” ou “guerra mais revolução” só tem sentido em relação à totalidade da trama, especialmente a cena em que o conflito entre a milícia e o exército regular explode em violência e sangue. Certamente, a oposição entre esses dois grupos é central no filme: daí, a impressão e a lembrança que nos ficam provêm diretamente da maneira como são caracterizados.
Por um lado, a milícia do POUM é mostrada como cheia de vida e acolhedora. Uma união fraterna, onde cada miliciano tem e mantém sua personalidade. As milicianas também, já que não é uma milícia exclusivamente masculina. Blanca não é apenas bonita, mas cumpre uma função importante, política e emocionalmente. (Ao contrário, em Por quem os sinos dobram, a personagem principal feminina, Maria, era uma vítima, e não uma protagonista ativa). Por outro lado, o exército republicano, agora “profissional”, é caracterizado como uma massa de brutais e indiferenciados uniformizados. Entre seus oficiais, observamos o americano que assistimos argumentar contra a coletivização.
Como todo o drama é visto (e narrado) através dos olhos de um bom rapaz, somos levados a nos identificar com um grupo (o grupo ao qual pertence o rapaz) e contra o outro: em parte, devido ao que aqueles grupos representam, e muito mais devido ao que eles aparentam.
Imaginemos um filme russo antitrotskista produzido no final dos anos 1930 (os stalinistas denunciaram o POUM como trotskista, o que ele não era: Trotsky foi abertamente crítico até o envolvimento do POUM na Frente Popular). Nos mostrariam, de um lado, um pelotão das Brigadas Internacionais, onde socialistas, comunistas e democratas lutariam como irmãos. Nos familiarizaríamos com três ou quatro deles, de diferentes países, com diversos passados e personalidades, com pequenas divergências que seriam resolvidas até o final. Nós os veríamos lutando, cozinhando e se divertindo. Pessoas decentes e eloquentes.
Do outro lado, nos apresentariam um bando selvagem e armado, incapaz de ter um diálogo político coerente. Se o roteirista se preocupa com a caracterização, ele mostraria cada um deles se embriagando, outro observando o relógio que roubou de um burguês e um terceiro fugindo com o dinheiro do grupo.
De acordo com a mesma lógica de Terra e Liberdade, só que de forma invertida, a história seria contada através das memórias de um jovem e inocente trabalhador. No começo, ele teria inclinações anarquistas, mas enquanto a trama fosse se desenvolvendo, ele se converteria gradualmente em amigo do camarada Stálin. Em síntese, o primeiro grupo seria identificado com o que reconhecemos como virtudes da humanidade, e o segundo com os sinais da malícia. Com quem o espectador seria levado a simpatizar? Isto seria Terra e Liberdade invertido: propaganda stalinista ao invés de antistalinista.
O mal da propaganda não é apenas porque ela mente. Os propagandistas também nos mantêm passivos: supõem que nos dão alimento para nosso pensamento, mas só nos entregam lixo processado.
A publicidade e a propaganda têm muito em comum. Ainda que a propaganda frequentemente pareça pobre e grosseira, comparada às habilidades imaginativas dos spots publicitários, os propagandistas usam técnicas similares. Um comercial de TV liga o produto em promoção à imagem de algo que se sabe de antemão que o potencial comprador gosta: um carro será mostrado junto a uma família feliz, comida para animais de estimação com um alegre gato jogando, uma loção corporal com uma modelo fashion, etc. Ela funciona sob o princípio da manipulação emocional. De igual forma, a propaganda nos dá um sinal positivo sobre o que queremos acreditar, e um negativo sobre o que deveríamos recusar. Em essência, é isto que a oposição milícia/exército resume em Terra e Liberdade: uma confrontação entre os bons e os maus.
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Nos anos 1970, alguns críticos de cinema atacaram o que rotularam de “ficção de esquerda”. Este gênero consistia em tomar emprestado os códigos do popular cinema mainstream e aplicá-los a um conteúdo antiburguês ou antiestablishment. Como nos filmes de detetive, o investigador iria desvendando a trama de um crime, mas desta vez o transgressor seria um criminoso social ou político. O personagem principal, um bom homem, apesar de suas contradições, seria um jornalista investigativo, um trabalhador, um policial honesto, um “homem da rua”, fazendo o seu melhor contra os militares fascistas, um estuprador, policiais racistas, um político corrupto ou um patrão explorador e abusivo. Como numa moderna moralidade (gênero teatral), os personagens personificam atitudes e grupos, e o protagonista principal representa a humanidade (isto é, a audiência) e atua em seu lugar. À medida que a trama se desenvolve, o herói e o espectador desmascaram a indecência e a infâmia da sociedade atual. Algumas vezes, o filme consegue isto sem precisar de um investigador ou de um herói: a moral implícita da história é tão clara que não há necessidade de corrigir o mal. Aqui há dois bons exemplos:
Z (1969): em um país não especificado (embora todos saibamos que se trata da Grécia), um obstinado juiz lança luz sobre o assassinato de um primeiro ministro da esquerda por oficiais do exército. A Confissão (1970): em 1952, um ministro do governo checo é preso sob falsas acusações e obrigado a confessar. Ambos foram dirigidos por Costa-Gavras e inspirados em fatos reais (em A Confissão, o julgamento de Slansky é mais tarde narrado por Artur London). Ambos foram grandes êxitos comerciais e de crítica. Um atacava os fascistas, o outro, os stalinistas.
Porém, o que foi esclarecido nestes bem intencionados filmes acerca da ditadura dos coronéis na Grécia entre 1967-1974, ou sobre os regimes burocráticos na Europa Oriental? Pouco ou nada, já que a explicação histórica é reduzida a uma luta entre heróis e vilões.
O leitor objetará que Ken Loach está muito distante do elegante e mainstream Costa-Gavras: afinal, o seu cinema não é orientado por perspectiva de classe? De acordo, mas há muito mais do que uma análise de classe. As ideias subjacentes em um filme, e muito mais a visão política que procura desenvolver, só existe em relação à forma como o escritor ou o diretor nos apresenta. Sempre que se trata de arte interessada, a forma é tão importante quanto o conteúdo. Para entender integralmente o significado histórico de Dickens ou Zola, não se pode contentar em entender apenas as suas “ideologias” explícitas ou implícitas: também devemos nos inteirar de como esses autores populares buscaram construir o apoio e a aprovação do leitor. Como se relacionam com o leitor? Quanto o permitem se situar na leitura? De fato, autores como Zola e Dickens usam códigos e padrões que deixam muito pouco espaço para uma distância crítica e reflexiva. O que é verdade nos livros se aplica ainda mais aos filmes, visto que o cinema apela mais diretamente aos sentimentos e emoções do que outras formas de arte, posto que a sua capacidade de manipulação é maior.
Terra e Liberdade faz grande uso dessa capacidade. Para enviar a sua mensagem à audiência, Ken Loach envia os sinais adequados. Ele é cuidadoso ao não nos apresentar um protagonista que entende tudo desde o princípio. David vai à Espanha como um dedicado, porém ingênuo antifascista, com uma crença ingênua no PC e na União Soviética. Ele é como milhões de trabalhadores em todo o mundo costumam ser, ingênuos, tal como é o espectador médio do filme. Só aos poucos e após dolorosas experiências, incluindo a perda da mulher que ama, ele perceberá a verdade que nós os espectadores reconhecemos graças a ele. A Espanha terá sido uma terra de iniciação tanto para David quanto para nós ao mesmo tempo.
O problema é que nossa consciência não é gerada ao analisar e criticar diferentes opções e posições. Tudo nos leva a identificar com David, com suas sucessivas atitudes, dúvidas e certezas finais, se nos deixa com apenas uma forma de pensar. Além do mais, e como na maioria dos outros filmes, o processo de empatia é ainda mais efetivo quando podemos nos identificar com um indivíduo que está longe de ser o protótipo do herói de ação, que parece lutar e atuar como você e eu. O anti-herói é a forma mais comum de herói dos nossos dias, prefira Loach ou George Lucas.
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Alguns amigos me disseram: “Terra e Liberdade pode ter suas debilidades, mas tem o considerável mérito de mostrar os conflitos que existiram dentro do campo republicano, especialmente as revoltas de maio de 1937, num filme destinado a uma massiva audiência: portanto, ele ajuda a esclarecer historicamente e encoraja o observador a aprender mais por si mesmo”. Este argumento está errado por uma série de razões.
Primeiro, os eventos de maio de 1937 possuem um significado muito diferente em 1937 e 70 anos mais tarde. Orwell, cuja experiência na Espanha foi semelhante à de David, teve uma grande dificuldade para ver seu livro Homenagem à Catalunha publicado. Algumas das 1.500 cópias publicadas em 1938 não haviam sido vendidas quando uma segunda edição saiu em 1951. Quando Orwell morreu em 1950, havia somente uma tradução (em italiano). A edição americana apareceu somente em 1952, a francesa em 1955. Desde então, o livro tornou-se parte da bagagem cultural de grande parte das pessoas politicamente interessadas ou educadas do ocidente. Somente o seguidor de Ken Loach poderia ter conhecimento das lutas “mutuamente destrutivas” ou “fratricidas” entre stalinistas e anarquistas durante a guerra civil espanhola. É no mínimo duvidoso que o filme Terra e Liberdade esclareça algo ao espectador médio. A ele é mostrado um conflito entre protagonistas que permanecem estranhos. POUM, CNT, trotskistas, comunistas… que significa tudo isso? E que diferença há entre comunistas e stalinistas? Tudo o que o espectador lembrará é que os derrotados (POUM e anarquistas) estavam com a razão, mas isso não foi suficiente para fazer algo com ela, e que os stalinistas ganharam… até Franco vencer a guerra. Felizmente, a história já mudou de página: o totalitarismo terminou em suas variantes fascistas e stalinistas. Franco está morto e também a URSS está (uma vez mais, em relação à diferença entre comunismo e stalinismo, a confusão continua: o stalinismo é mostrado simplesmente como uma mescla de autoritarismo, militarismo, decepção e mentiras). As cenas das lutas de rua em Barcelona, em maio de 1937, não nos dizem muita coisa.
Em segundo lugar, o que podemos entender ao nos identificarmos com uma forma de bem ante uma forma de mal? Se levarmos a lição a sério, devemos nos preparar para lutar (inclusive, numa guerra) contra um inimigo caracterizado como um vilão absoluto, contra quem qualquer meio, mesmo aqueles que são considerados inaceitáveis, como a tortura e os assassinatos extrajudiciais, apareceriam como um mal menor. Quando lidamos com aqueles que explodem pessoas inocentes no metrô, tudo parece permitido. (“Um terrorista é alguém que tem uma bomba, mas não uma força aérea”, escreveu William Blum). Ken Loach certamente não apoia a “Guerra contra o terrorismo”, mas a lógica binária de Terra e Liberdade é compatível com qualquer versão de um mal menor.
Terceiro e mais importante, o filme evita as questões políticas importantes da guerra na Espanha:
Basicamente, para a Esquerda comunista (principalmente a esquerda “italiana”, mas também a esquerda “germano-holandesa”), a partir do momento em que os proletários aceitaram combater o fascismo sob a liderança do estado democrático, eles perderiam de duas formas distintas. Primeiro, perderiam as vitórias e reivindicações que haviam obtido da burguesia até aquele momento, e, posteriormente, perderiam a batalha militar antifascista. A posição da esquerda comunista foi e continua sendo a de uma pequena minoria.
Entretanto, se ninguém toma essa posição, se se acredita que Franco somente poderia ser destruído pela ação de uma força armada efetiva, apoiada por todas as tendências democráticas da população, incluindo a burguesia, então quem está correto? A pequena milícia do POUM, cuja única força era derivada de sua experiência proletária e sua atividade insurgente? Ou uma forte e estruturada máquina militar, popular e moderna ao mesmo tempo, que não tem medo de fazer uso da disciplina, nem de incorporar oficiais conservadores, desde que lutem pela República e contra o fascismo?
Terra e Liberdade não se posiciona a respeito desta questão. Na verdade, não se posiciona em praticamente nada, apenas nos faz sentir empatia pela gente comum frente aos poderosos. Nada mal… porém, não faz nada para expandir nossa consciência.
Este não é o momento para propor outra versão da história. Digamos apenas que em 1937, quando a contrarrevolução prevaleceu em todo o mundo, incluindo a Espanha, procurar uma forma revolucionária de lutar contra o fascismo era como tentar quadrar o círculo. A vitória do exército regular contra as milícias, e, finalmente, sua derrota contra Franco, eram inevitáveis. Como Orwell escreveu alguns anos depois:
“As milícias do governo espanhol durante os primeiros seis meses da guerra – o primeiro ano na Catalunha – eram um exército genuinamente democrático, porém eram também um tipo primitivo de exército, capaz apenas de ações defensivas (…). Mas se se quer eficácia militar no sentido comum, não há como escapar do soldado profissional, e enquanto o soldado profissional estiver no controle, ele se encarregará de impedir que o exército seja democratizado. E o que é verdade entre as forças armadas também é verdade para a nação como um todo; cada aumento da força da máquina militar significa mais poder para as forças da reação” (Democracia no exército britânico, setembro de 1939).
Um exército democrático não é aquilo que pretendemos. Além do mais, as milícias certamente não eram tão “primitivas” como Orwell sugere. Qualquer que seja o caso, o filme de Ken Loach não concorda nem discorda. Ele se esquiva do assunto. O problema de Terra e Liberdade é que ele nos deixa com a impressão de que apesar das más condições da época (isto é, com uma burguesia no poder do estado), as milícias como são caracterizadas no filme poderiam ter resistido contra Franco.
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Terra e Liberdade não é criticável por ser um filme com uma mensagem, mas porque pretende nos educar, enquanto nos entretém com verdades mastigadas. A narrativa não é tão diferente da típica produção de Hollywood com seus bons moços, seus vilões malucos, seu homem honesto que entra na vida adulta, perde a inocência e um pouco do rumo até voltar ao caminho correto. Todas essas características da ficção mainstream se encontram em Terra e Liberdade, sem esquecer da inteligente e bela moça que morre pelo herói: a morte trágica de Blanca é o passo final na ruptura de David com o stalinismo. O filme pensa por nós. Nos mostra um herói positivo que serve de exemplo para a nossa própria conduta. David aprende sua lição duramente em 1937: a narração de sua tomada gradual de consciência, a sua perda das ilusões em relação ao PC, nos instruirão 60 ou 80 anos depois. Tudo é mostrado através dos olhos de David: qualquer outra janela para a realidade está fechada para nós. David enfrenta uma sucessão de escolhas que são de fato impostas a ele, e somos obrigados a corroborar suas (forçadas) decisões, à medida que cada membro da audiência se identifica com ele. Na verdade, esse é exatamente o propósito de focalizar tudo em um herói positivo (um observador crítico deveria recusar o filme em sua totalidade, assim como um fanático stalinista, mas estes são espécies em extinção). Ao invés de assumir o controle de sua compreensão, o espectador se vê induzido a permanecer passivo.
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Ainda que que possa ser interessante fazer uma análise de outros filmes de Ken Loach (incluindo os seus documentários), este texto não é sobre ele em geral, mas tão somente uma pequena intromissão na prática da propaganda. (Por exemplo, se o método utilizado em Terra e Liberdade também pode ser visto em Os ventos da Liberdade (2006), não é assim em Looks and smiles (1979)). 
A autonomia – tanto individual, como coletiva – não é certamente a chave para tudo, mas é uma condição necessária de uma luta consistente pela emancipação humana. Por isto, não pode haver nenhuma atividade de propaganda “útil”. O autopoder é incompatível com o controle das emoções, heróis positivos, os modelos a seguir e as conclusões induzidas. Nada é óbvio. A alienação não pode ser combatida com meios alienados.
2014
Gilles Dauvé
Traduzido por Felipe Andrade e revisado por José Santana. A tradução foi realizada a partir das seguintes versões: https://bibliotecacuadernosdenegacion.blogspot.com/2017/01/las-dudosas-virtudes-de-la-propaganda.html e http://www.troploin.fr/node/82.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Capitalismo e Cinema - Nildo Viana

O presente artigo busca analisar a relação entre cinema e capitalismo. A relação entre cinema e capitalismo pode ser observada por vários aspectos. O primeiro aspecto seria a percepção de que o cinema é um produto do capitalismo e isto está ligado ao processo de discussão sobre os meios oligopolistas de comunicação, tal como é destacado por alguns autores.1 Tendo em vista que um filme é um produto social e histórico, e ainda coletivo, pois ao contrário de outras formas de arte raramente é produzido individualmente, sendo geralmente produzido por uma equipe, então é fundamental entender o seu processo de produção no interior da sociedade capitalista.
(...)
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Artigo:

Lista dos filmes citados no artigo que estão disponíveis no YouTube:
https://www.youtube.com/playlist?list=PL7ZCPdf7hH5s1krGBUNCc_8bkWOizKxsg

Download do Torrent dos filmes citados no artigo:
https://mega.nz/file/KPgTTRrC#1M8Wa5YF1un_LiSJJdwX-RteaIr25WdXhNAZ7TUUVec

Filmes no arquivo:
- Christine, O Carro Assassino
- Clube da Luta
- Crepúsculo dos Deuses
- FormiguinhaZ
- Mad Max
- Matrix
- Mundo Proibido
- O Anjo Exterminador
- Um Estranho no Ninho
- Sociedade dos Poetas Mortos
- Uma História sem Fim
- V de Vingança
- O Show de Truman
- Eles Vivem
- O Mentiroso
- Donnie Darko

Download pelo Mega dos filmes citados no artigo:
A Regra do Jogo (1939) - Jean Renoir
https://mega.nz/#!EupDUCqB!KUyx3tmOqCmoKANWBZDOEh6sRuVGUVzRr8n7tg2SGdE

A Terra Treme (1948) - Luchino Visconti
https://mega.nz/#!v3xTWQAD!1s8gKeFVA4SF7oRG7ZL--Y2zyOODuU4aslItycPl_UM

Belíssima (1952) - Luchino Visconti
https://depositfiles.org/files/xm6lkmqfo

Cecil bem Demente (2000) - John Waters
https://mega.nz/file/9fRUWLaT#rncw73Hg6cj22sZ9CaBSjluSrHIs4VjjTez1-_o8u_M

Love Story - Uma história de amor (1970) - Arthur Hiller
https://depositfiles.org/files/l6s1kbas4

O Dia do Gafanhoto (1975) - John Schlesinger
https://mega.nz/#!y3ICDCZb!8KKoaGAGiY9Qzmv0VQdCcX8xKWe3vO11pyxgPpKNPYY

O Mundo Fabuloso de Billy Liar (1963) - John Schlesinger
https://mega.nz/#!WMs1WL7C!EWsJ_RSYu5nQZqnUpTIMiZqom3ZM8vNpqIooB2op_Wg

Rocco e seus Irmãos (1960) - Luchino Visconti
https://mega.nz/file/PF5F2CxK#dUfjWqY8CN1OybHFqhBcvml9G403M8Fd8oUolrQ2-tU


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Filme Laranja Mecânica – O Controle Totalitário sobre a Natureza Humana

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Na teoria hobbesiana sobre o estado de natureza dos homens existe uma asserção que é bastante conhecida: “o homem é o lobo do homem”. Nessa passagem, Hobbes afirma o caráter maligno da natureza humana que, inserido em uma realidade social, precisa se submeter a um contrato social perante o Estado, para que a sociedade possa estar dentro de uma ordem, livre e pacífica. Não é por menos que o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, trará tal proposição para ser discutida.

Logo no começo do filme, somos apresentados à gangue de Alex, em uma espécie de “boate”, repleta de estátuas em forma de mulheres nuas que fornecem uma bebida similar a um leite para os rapazes. Depois de presenciarmos o ambiente em que os rapazes convivem, adentramos um pouco às suas atividades cotidianas. A gangue de Alex se satisfaz em bater em um velho mendigo sozinho debaixo da ponte, participar de uma briga com uma gangue rival no teatro e estuprar a esposa de um escritor em uma mansão perto da estrada. Todas essas atividades são realizadas com a justificativa de uma “ultraviolência”, necessária para a satisfação pessoal dos rapazes adolescentes.

Depois de conhecermos um pouco sobre as atividades desses jovens “delinquentes”, podemos entender um pouco da vida do jovem Alex – protagonista e narrador do filme. Filho de pais, aparentemente com condições financeiras privilegiadas, ele possui um quarto próprio, preferência por música clássica (Ludwig van Beethoven), um animal de estimação (uma cobra), e parece pouco se preocupar com seus afazeres escolares – em um momento, sua mãe diz que ele não vai à escola por uma semana. Além disso, descobrimos que os pais de Alex desconhecem as atividades que o seu filho realiza fora da escola, ou seja, a sua participação em uma gangue e em atividades violentas. Podemos dizer que entre Alex e os seus pais, há um distanciamento grande, o que gerará problemas no futuro.

Em um desentendimento com os seus “drugs” (companheiros), Alex em uma tentativa de mais um estupro, vai a um SPA, mata uma mulher e logo depois, é alvo de uma traição por parte deles. Então ele é preso e começa o segundo momento do filme, à qual Alex começa a vivenciar a realidade prisional daquela sociedade. As prisões são superlotadas e o ministro do interior procurando uma solução para a diminuição da violência e do crime, permite a alguns cientistas a utilização de um novo método chamado Ludovico, que busca transformar as pessoas más em boas. Assim, o corpo se adaptaria a certas reações fisiológicas negativas para inibir o comportamento violento. O método é similar ao behaviorismo clássico, corrente teórica da psicologia que surgiu no começo do século XX, e frequentemente era utilizado para esses casos na época em que o filme foi realizado.

Acompanhamos o tratamento de Alex que se dispôs a melhorar a sua condição problemática, para poder sair da prisão. No decorrer deste tratamento, seu organismo começa a ser aplicado com vitaminas, e logo depois, ele começa a assistir cenas de violência, guerra e estupros, junto com uma trilha sonora da nona sinfonia de Beethoven. Assim, concluímos que a sua natureza violenta é restringida por certos medicamentos, gerando uma reação de náusea que o impede de cometer qualquer ato que seja contrário às normas sociais. Alex “aprende” a ser bom para viver em sociedade, tal como o contrato social hobbesiano.

Ao sair da prisão, Alex é ressocializado e se torna manchete dos principais jornais, considerando-o como um sucesso para a solução da criminalidade e violência nesta sociedade. Podemos ver que o indivíduo é culpabilizado pela sua situação, tratado pelo Estado como delinquente, e depois de receber o seu tratamento, poderá voltar à sua situação anterior e se adaptar à sociedade, agora como um indivíduo bom. O problema é que Alex já possuía problemas que não eram determinados apenas por uma suposta “natureza má”. Assim, seus conflitos familiares se mostram mais evidentes no segundo momento do filme. Pouco depois de voltar à sua casa, ele é abandonado por seus pais, e por conta disso, é forçado a procurar um lugar para ficar; porém, a sociedade já era violenta antes dele e problemas sociais existiam. Não é por menos que Alex revive todos os atos que cometera antes de ser preso. No decorrer do filme, revivemos a “ultraviolência”, mas dessa vez pelo lado das vítimas. O mesmo mendigo que ele havia maltratado em um primeiro momento, procura revidar o que tinha acontecido consigo. Pouco depois, os seus ex-amigos se tornaram policiais e encontram Alex na rua, o que lhe permitem utilizar da violência do seu cargo para revidarem a violência afligida a eles anteriormente. Depois, Alex entra na mansão, em que tinha cometido o estupro à mulher de um escritor; ele percebe que o seu detrator está em sua casa, e não obstante, utiliza de técnicas para revidar a morte de sua amada, levando Alex a cometer um ato de suicídio. É um círculo vicioso: a violência vai gerando a violência.

Por fim, Alex não morre. Ele é encontrado pelo governo, que passa a tratá-lo da melhor forma possível, pois sua imagem diante da sociedade fora manchada, já que o tratamento utilizado para diminuir a criminalidade levou um indivíduo a quase se matar. Para que o partido possa se eleger nas próximas eleições, Alex é utilizado como propaganda, e em sua situação de abandono social, ele é levado a consentir em ser utilizado e amparado pelo Estado. Percebemos assim que a utilização do método ludovico foi um pressuposto que o Estado utilizou para gerar o controle social e a ordem, não chegando a propor nenhuma resolução dos conflitos sociais, mas apenas uma forma de propaganda para se perpetuar no poder. O que permite afirmar, por parte deles, que o indivíduo seria determinado por uma natureza má e culpabilizado pela sua situação, dando a omissão necessária para que as instituições, tais como a polícia, as prisões, a desigualdade social, os partidos e os governantes, não sejam agentes também determinantes pela situação de violência social naquela sociedade.

Porém, não podemos seguir tal raciocínio, pois consideramos o behaviorismo clássico uma ideologia que parte de premissas científicas consideradas verdadeiras em certo momento, mas que não parte da totalidade das relações sociais, ocultando assim a sua base fundamental: a ciência é permeada por valores sociais que são perpassados por uma classe dominante, criado por indivíduos reais e históricos, e, dessa forma, a sua criação justifica a dominação social. O indivíduo é construído socialmente, e de acordo com os valores sociais e condições históricas, ele poderá ter uma personalidade mais fraternal com os seus próximos, ou mais depreciativa e violenta com os demais. O indivíduo não é mau; ele pode ser tanto mau, bom, individualista ou solidário. A teoria hobbesiana parte de pressupostos de uma teoria política, mas que em sua essência está naturalizando a realidade, através da necessidade de um Estado monárquico (totalitário), assim como o behaviorismo clássico, elevado a um estatuto de uma ciência psicológica, está também naturalizando a realidade, através de uma determinação biológica que condicionará certas ações dos indivíduos, excluindo, portanto, as múltiplas determinações que constroem o caráter psíquico do indivíduo (a sociedade, a sua classe social, os seus valores, o inconsciente etc.). As duas teorias possuem bases insuficientes para a complexa realidade social ali presente.

Colocamos então que o filme possui uma visão crítica, colocando que nessa sociedade distópica existe um conflito de interesses políticos entre os partidos (liberal e conservador) que estão buscando apenas o poder em si, e não o desenvolvimento e melhoramento por uma sociedade mais humana. O governo se utiliza de métodos que restringem as possibilidades dos indivíduos serem livres, o que é criticado pelo padre que não aceita o método ludovico. Portanto, um governo totalitário se utilizará de métodos ideológicos (científicos) que impedem o desenvolvimento da capacidade individual dos indivíduos, e a liberdade da expressão humana de cada um, seja violenta ou pacífica, mostrando apenas que o indivíduo é mau, bom, ou pode ser transformado milagrosamente por um método científico.
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Texto escrito em 2014.
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