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* Avisamos ao leitor que o texto visa realizar uma assimilação do filme Eles Vivem (1988) de John Carpenter, de acordo com fins políticos e dando um significado particular ao filme que não condiz exatamente com o significado original da obra. Assim, fazemos um exercício de livre reflexão sobre o filme, tendo como base o material disponível no universo ficcional daquele. Em determinados momentos, a reflexão condiz com elementos do universo ficcional presentes no filme, e em outros não.
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O filme de ficção científica Eles Vivem trata de uma sociedade na qual os seres humanos são
dominados e explorados por alienígenas. A forma como ocorre tal dominação e
exploração, assemelha-se aos meios existentes na sociedade capitalista, o que
transforma o filme em uma metáfora da luta de classes na realidade. Desse modo,
os alienígenas formam a classe capitalista, enquanto os seres humanos são
divididos em várias classes sociais. Dentre estas diversas classes sociais, a
classe trabalhadora continua sendo explorada e dominada, ao passo que a classe
capitalista e suas auxiliares visam reproduzir a sociedade existente.
Na trama do
filme, temos um operário sem nome (Nada) que chega na cidade para arrumar um
emprego. Em seguida, ele consegue um trabalho na construção civil,
relacionando-se a partir daí com Frank, outro operário. Interessante notar a
solidariedade entre ambos, o que obviamente contrasta com o egoísmo presente
entre a classe dominante e a busca pela defesa de seus interesses pessoais,
sobretudo o lucro. Logo depois do trabalho, Frank e Nada vão para um
acampamento, próximo de uma igreja, no qual vários indivíduos desempregados,
sem tetos, vivendo de condições precárias compartilham um assentamento urbano. Um
dos líderes desse acampamento é Gilbert, que logo recebe Nada, acolhendo-o ali
em diante com os demais indivíduos da classe trabalhadora, subalternos ou do
lumpemproletariado. Dentro do cotidiano desses indivíduos, em meio aos
problemas de desemprego, fechamento de fábricas etc., percebe-se o total
conformismo, submissão e aceitação da realidade existente. O operário e
andarilho Nada, por exemplo, diz em um diálogo que é um cidadão comum, acredita
nos EUA e segue as regras.
Aos poucos percebemos que as televisões da
cidade (ou mesmo do país) têm recebido uma interferência, na qual um senhor
aparece na programação e começa a questionar a dominação e o controle que
grande parte da população tem aceitado, sem se dar conta disso, ou mesmo
revoltar. Assim, as pessoas são tratadas como gado, escravos e nada fazem para
mudar esta condição. Ao lado do acampamento, há uma igreja que é um local de
reunião para um grupo revolucionário, este que é justamente o responsável pelas
interferências na programação da televisão. Tal situação vai permitir a John o
avanço de sua consciência. Em certo momento, a igreja é invadida pela polícia,
que utilizando da sua habitual repressão destrói o acampamento e a igreja. Nada
percebe essa situação, vai até a igreja, descobre uma caixa com uns óculos e
experimenta usar, no dia seguinte à destruição por parte da polícia.
Os óculos
de sol que o operário utiliza gera uma mudança impressionante em sua “visão” da
realidade e do mundo ao seu redor. Nada começa a enxergar as mensagens por detrás
da publicidade, os discursos como realmente são na televisão e os alienígenas
disfarçados de seres humanos. As mensagens reveladas pelos óculos reproduzem os ideologemas, valores, sentimentos e representações cotidianas ilusórias na sociedade
burguesa, cuja finalidade é a reprodução da hegemonia da classe dominante, ou
do que alguns chamam de “status quo”. Os óculos possibilitam romper com a
hegemonia burguesa, desvelando a cultura da sociedade capitalista em seus inúmeros aspectos. Assim,
mensagens como “obedeça”, “case e se reproduza”, “não há livre pensar”,
“consuma”, “durma”, “compre”, “não pense” e “assista televisão”, revelam ideias
que interessam à classe burguesa. A autonomia, a verdade, a igualdade, a
reflexão intelectual, o bem-estar mental e físico, questões que deveriam ser
compartilhadas e vividas em uma sociedade emancipada, devem ser evitadas e
reproduzidas a fim de manter a dominação e exploração por parte de uma classe
dominante.
Por isso, o
operário Nada logo sofre um “choque de realidade”, na medida em que os seus
verdadeiros interesses são revelados por detrás da falsidade que permeou toda a
sua existência. Não é por acaso que logo depois de utilizar os óculos, ele
começa a matar os alienígenas, tornando-se um guerrilheiro armado que logo
depois é perseguido pela polícia. Assim, ele sequestra uma mulher, chamada
Holly Thompson, diretora do canal 54, mas logo é repreendido por ela e foge de
sua casa. Em seguida, Nada consegue fugir da polícia e encontra Frank. Ao
encontrar Frank, Nada tenta convencê-lo da necessidade de utilizar os óculos e
enxergar a realidade como ela é realmente, partindo de outra perspectiva que não seja a da classe dominante. Após alguns minutos de brigas e
discussões, Frank coloca os óculos e juntamente com Nada, desperta do sonho em
que estava adormecido.
Frank e
John Nada se unem na luta contra a dominação alienígena, quando começam a
utilizarem os óculos. Dessa maneira, dois operários avançam a sua consciência
para uma perspectiva crítica da realidade e começam a lutar pela emancipação
humana a partir da destruição da hegemonia burguesa controlada pelos alienígenas.
Ambos encontram Gilbert, um dos líderes do grupo revolucionário que criou os
óculos, que, por sua vez, chama eles para uma reunião estratégica de
planejamento e organização para enfrentarem os alienígenas nessa sociedade. O
problema é que existem diversos obstáculos, e um deles é o problema de os
próprios seres humanos terem sido cooptados pelos alienígenas, tornando-se auxiliares
da classe exploradora. Geralmente, tais indivíduos que auxiliam fazem parte das
classes superiores, ou seja, das classes auxiliares da burguesia que são a
classe burocrática e intelectual. O plano do grupo revolucionário consiste no
desligamento de um sinal do satélite criado pelos alienígenas, com a função de
manter a reprodução da sociedade por meio das mensagens e ideias reproduzidas
pelo capital comunicacional, principalmente o capital televisivo.
Acontece
que o esconderijo do grupo revolucionário é descoberto e, por sua vez, invadido
pela polícia que começa a exterminar todo mundo. No meio disso, Frank e Nada
conseguem fugir, utilizando de um relógio alienígena que abre um portal e
leva-os para a base secreta dos aliens. Nessa base, os dois heróis iniciam uma
luta dentro do prédio, até chegar à central da rede de televisão 54, lugar em
que o sinal de satélite que veicula as ideias dominantes se localiza. Assim,
Nada consegue chegar até o terraço, avistar a antena e destruí-la com o
armamento de fogo que estava em sua posse. A partir disso, com a destruição da
transmissão de satélite que os alienígenas mantinham, a verdadeira face deles é
revelada, gerando um intenso furor e choque entre os seres humanos.
O principal
tema que podemos analisar nesse filme é a dominação cultural burguesa que
ocorre na sociedade capitalista. Além da relação de exploração que ocorre no
processo de produção, há também em nossa sociedade o aparato estatal e seus
diversos aparatos (educacional, comunicacional, repressivo etc.), bem como o
capital comunicacional, que visam garantir a reprodução e a acumulação de
capital. O que ganha destaque nesse filme é o aparato comunicacional, ou seja,
o capital comunicacional privado e estatal que veicula através de mensagens,
nos seus diversos meios tecnológicos de reprodução (tv, rádio, cinema etc.), as
concepções, representações, sentimentos, ideologemas, etc., que servem para a
manutenção da hegemonia burguesa na sociedade. Há, portanto, todo um universo
cultural que impede os indivíduos de enxergarem a possibilidade de
transformação social radical e total da sociedade capitalista.
Assim, um dos motivos dos indivíduos
não se rebelarem ou lutarem pela transformação é a cultura burguesa que busca legitimar a realidade existente. Desse
modo, o filme ajuda a compreender esse elemento, mostrando que a televisão, a
publicidade, o consumo, entre outros elementos servem para legitimar a sociedade burguesa como
ela é. Os valores como a hierarquia, a submissão e o consumo, são introjetados
na mentalidade dos indivíduos, fazendo com que eles aceitem as relações sociais
como naturais, eternas e imutáveis. Portanto, os indivíduos não apenas aceitam
a sociedade como ela é, mas desejam-na, agem como se tais valores fossem
realmente importantes em sua vida. Logo, na perspectiva do materialismo
dialético, as ideias também possuem força material, atuam na realidade e podem
ser um dos elementos que ensejam mudanças ou não. O filme Eles Vivem contribui justamente na percepção de que determinadas
ideias podem ser falsas, inautênticas e, portanto, devem ser combatidas e criticadas,
desvelando a verdadeira face daqueles que dominam e exploram em nossa
sociedade. Por detrás de cada alienígena, há um capitalista disfarçado no
cotidiano que luta para manter os seus interesses, em detrimento da miséria da
classe trabalhadora que se mantém sufocada e reduzida aos seus interesses
imediatos que correspondem à manutenção da sociedade burguesa. Dessa maneira, o
filme revela uma mensagem de crítica social, de modo que ele é um instrumento
de luta cultural. A mensagem abre brechas para que a luta contra a classe
dominante seja possível, despertando a classe trabalhadora das cadeias da
exploração e para a necessidade de lutar pela transformação dessa
sociedade.
Leitura recomendada:
Luta de Classes e Universo Cultural - Nildo Viana
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