sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Filme Laranja Mecânica – O Controle Totalitário sobre a Natureza Humana

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Na teoria hobbesiana sobre o estado de natureza dos homens existe uma asserção que é bastante conhecida: “o homem é o lobo do homem”. Nessa passagem, Hobbes afirma o caráter maligno da natureza humana que, inserido em uma realidade social, precisa se submeter a um contrato social perante o Estado, para que a sociedade possa estar dentro de uma ordem, livre e pacífica. Não é por menos que o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, trará tal proposição para ser discutida.

Logo no começo do filme, somos apresentados à gangue de Alex, em uma espécie de “boate”, repleta de estátuas em forma de mulheres nuas que fornecem uma bebida similar a um leite para os rapazes. Depois de presenciarmos o ambiente em que os rapazes convivem, adentramos um pouco às suas atividades cotidianas. A gangue de Alex se satisfaz em bater em um velho mendigo sozinho debaixo da ponte, participar de uma briga com uma gangue rival no teatro e estuprar a esposa de um escritor em uma mansão perto da estrada. Todas essas atividades são realizadas com a justificativa de uma “ultraviolência”, necessária para a satisfação pessoal dos rapazes adolescentes.

Depois de conhecermos um pouco sobre as atividades desses jovens “delinquentes”, podemos entender um pouco da vida do jovem Alex – protagonista e narrador do filme. Filho de pais, aparentemente com condições financeiras privilegiadas, ele possui um quarto próprio, preferência por música clássica (Ludwig van Beethoven), um animal de estimação (uma cobra), e parece pouco se preocupar com seus afazeres escolares – em um momento, sua mãe diz que ele não vai à escola por uma semana. Além disso, descobrimos que os pais de Alex desconhecem as atividades que o seu filho realiza fora da escola, ou seja, a sua participação em uma gangue e em atividades violentas. Podemos dizer que entre Alex e os seus pais, há um distanciamento grande, o que gerará problemas no futuro.

Em um desentendimento com os seus “drugs” (companheiros), Alex em uma tentativa de mais um estupro, vai a um SPA, mata uma mulher e logo depois, é alvo de uma traição por parte deles. Então ele é preso e começa o segundo momento do filme, à qual Alex começa a vivenciar a realidade prisional daquela sociedade. As prisões são superlotadas e o ministro do interior procurando uma solução para a diminuição da violência e do crime, permite a alguns cientistas a utilização de um novo método chamado Ludovico, que busca transformar as pessoas más em boas. Assim, o corpo se adaptaria a certas reações fisiológicas negativas para inibir o comportamento violento. O método é similar ao behaviorismo clássico, corrente teórica da psicologia que surgiu no começo do século XX, e frequentemente era utilizado para esses casos na época em que o filme foi realizado.

Acompanhamos o tratamento de Alex que se dispôs a melhorar a sua condição problemática, para poder sair da prisão. No decorrer deste tratamento, seu organismo começa a ser aplicado com vitaminas, e logo depois, ele começa a assistir cenas de violência, guerra e estupros, junto com uma trilha sonora da nona sinfonia de Beethoven. Assim, concluímos que a sua natureza violenta é restringida por certos medicamentos, gerando uma reação de náusea que o impede de cometer qualquer ato que seja contrário às normas sociais. Alex “aprende” a ser bom para viver em sociedade, tal como o contrato social hobbesiano.

Ao sair da prisão, Alex é ressocializado e se torna manchete dos principais jornais, considerando-o como um sucesso para a solução da criminalidade e violência nesta sociedade. Podemos ver que o indivíduo é culpabilizado pela sua situação, tratado pelo Estado como delinquente, e depois de receber o seu tratamento, poderá voltar à sua situação anterior e se adaptar à sociedade, agora como um indivíduo bom. O problema é que Alex já possuía problemas que não eram determinados apenas por uma suposta “natureza má”. Assim, seus conflitos familiares se mostram mais evidentes no segundo momento do filme. Pouco depois de voltar à sua casa, ele é abandonado por seus pais, e por conta disso, é forçado a procurar um lugar para ficar; porém, a sociedade já era violenta antes dele e problemas sociais existiam. Não é por menos que Alex revive todos os atos que cometera antes de ser preso. No decorrer do filme, revivemos a “ultraviolência”, mas dessa vez pelo lado das vítimas. O mesmo mendigo que ele havia maltratado em um primeiro momento, procura revidar o que tinha acontecido consigo. Pouco depois, os seus ex-amigos se tornaram policiais e encontram Alex na rua, o que lhe permitem utilizar da violência do seu cargo para revidarem a violência afligida a eles anteriormente. Depois, Alex entra na mansão, em que tinha cometido o estupro à mulher de um escritor; ele percebe que o seu detrator está em sua casa, e não obstante, utiliza de técnicas para revidar a morte de sua amada, levando Alex a cometer um ato de suicídio. É um círculo vicioso: a violência vai gerando a violência.

Por fim, Alex não morre. Ele é encontrado pelo governo, que passa a tratá-lo da melhor forma possível, pois sua imagem diante da sociedade fora manchada, já que o tratamento utilizado para diminuir a criminalidade levou um indivíduo a quase se matar. Para que o partido possa se eleger nas próximas eleições, Alex é utilizado como propaganda, e em sua situação de abandono social, ele é levado a consentir em ser utilizado e amparado pelo Estado. Percebemos assim que a utilização do método ludovico foi um pressuposto que o Estado utilizou para gerar o controle social e a ordem, não chegando a propor nenhuma resolução dos conflitos sociais, mas apenas uma forma de propaganda para se perpetuar no poder. O que permite afirmar, por parte deles, que o indivíduo seria determinado por uma natureza má e culpabilizado pela sua situação, dando a omissão necessária para que as instituições, tais como a polícia, as prisões, a desigualdade social, os partidos e os governantes, não sejam agentes também determinantes pela situação de violência social naquela sociedade.

Porém, não podemos seguir tal raciocínio, pois consideramos o behaviorismo clássico uma ideologia que parte de premissas científicas consideradas verdadeiras em certo momento, mas que não parte da totalidade das relações sociais, ocultando assim a sua base fundamental: a ciência é permeada por valores sociais que são perpassados por uma classe dominante, criado por indivíduos reais e históricos, e, dessa forma, a sua criação justifica a dominação social. O indivíduo é construído socialmente, e de acordo com os valores sociais e condições históricas, ele poderá ter uma personalidade mais fraternal com os seus próximos, ou mais depreciativa e violenta com os demais. O indivíduo não é mau; ele pode ser tanto mau, bom, individualista ou solidário. A teoria hobbesiana parte de pressupostos de uma teoria política, mas que em sua essência está naturalizando a realidade, através da necessidade de um Estado monárquico (totalitário), assim como o behaviorismo clássico, elevado a um estatuto de uma ciência psicológica, está também naturalizando a realidade, através de uma determinação biológica que condicionará certas ações dos indivíduos, excluindo, portanto, as múltiplas determinações que constroem o caráter psíquico do indivíduo (a sociedade, a sua classe social, os seus valores, o inconsciente etc.). As duas teorias possuem bases insuficientes para a complexa realidade social ali presente.

Colocamos então que o filme possui uma visão crítica, colocando que nessa sociedade distópica existe um conflito de interesses políticos entre os partidos (liberal e conservador) que estão buscando apenas o poder em si, e não o desenvolvimento e melhoramento por uma sociedade mais humana. O governo se utiliza de métodos que restringem as possibilidades dos indivíduos serem livres, o que é criticado pelo padre que não aceita o método ludovico. Portanto, um governo totalitário se utilizará de métodos ideológicos (científicos) que impedem o desenvolvimento da capacidade individual dos indivíduos, e a liberdade da expressão humana de cada um, seja violenta ou pacífica, mostrando apenas que o indivíduo é mau, bom, ou pode ser transformado milagrosamente por um método científico.
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Texto escrito em 2014.
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